25/08/2020 às 17h43min - Atualizada em 25/08/2020 às 17h43min

ESTADOS UNIDOS DESCOBREM O SEGREDO ANTIDROGAS:

CADEIA NÃO REABILITA NINGUÉM


Estamos no condado de Clermont, em Ohio, Estados Unidos. O subxerife Steve Singleton desce da viatura policial, ajeita o chapéu e bate à porta de um apartamento térreo colado a um bar. É uma tarde de fevereiro de 2020, antes da pandemia do novo coronavírus. A temperatura é de 0°C e chove, mas, mesmo assim, o homem que atende - alto, loiro e corpulento, aparentando 20 e poucos anos - sai para falar com ele sem camisa. O subxerife Singleton não põe a mão na arma que traz na cintura. Não revista nem anuncia a prisão do homem. Nem mesmo entra na casa. Com voz calma, ele se apresenta e pergunta ao homem que atendeu se Kristy Mudd e Bryan Taylor, que estão na viatura, podem vir falar com ele.
O homem havia sido preso com metanfetamina dias antes. Pagou a fiança e aguardava a sentença em liberdade. Deu ok para a conversa com Kristy e Bryan, ex-dependentes que integram o programa de aconselhamento do condado, onde exercem uma função que mistura a figura do padrinho de programas como Narcóticos Anônimos com a de assistente social. Pararam de usar drogas. Um parou há seis anos e meio e o outro parou há oito anos. Hoje, são pagos pelo governo local para acompanhar pessoas que buscam tratamento contra a dependência química. Uma vez por semana, eles vão de uma casa a outra, seguindo uma lista de pessoas que tiveram overdoses recentes, foram presas com drogas ou porque as famílias pediram ajuda. É a chamada Equipe de Resposta Rápida a Opioides (qualquer composto químico psicoativo que produza efeitos farmacológicos semelhantes aos do ópio ou de substâncias nele contidas). Mesmo depois que o coronavírus chegou à região, as visitas se mantiveram – todos conversam de máscara, sem se aglomerar, e do lado de fora.
“Nós já estivemos no seu lugar e entendemos. Somos a prova de que a recuperação é possível”, repetem ao iniciar as conversas. Sua missão é convencer cidadãos a buscar tratamento para dependência de substâncias ilegais: mais frequentemente, os opioides – oxicodona, heroína, fentanil – ou a metanfetamina.
Ninguém é obrigado a se tratar, e eles não têm poder de internar involuntariamente. O subxerife vai junto para ajudar a dar legitimidade à dupla e para garantir sua segurança. Mas, segundo eles sempre dizem, é muito difícil que sejam mal recebidos ou com violência.
 
O homem do apartamento vizinho a um bar nega abusar de drogas e recusa o tratamento. Kristy e Bryan deixam com ele seus cartões – “pode ligar ou mandar mensagem a qualquer hora”, diz ela – e uma sacolinha com folhetos sobre recuperação e com Narcan, spray nasal que reverte overdoses por opioides.
A atuação da Equipe de Resposta Rápida de Clermont é uma prova de que atitudes como essa em relação às drogas estão mudando nos EUA, a começar pelo foco da polícia e do sistema judicial. Durante décadas de guerra contra o crack, a principal ação do país foi prender e dar penas sempre maiores. Mas hoje, ao contrário, em muitos locais prevalece a política de oferecer tratamento a quem é preso com drogas ou que comete crimes devido à dependência.
“Nossa prioridade é proteger a vida e a propriedade. Isso inclui ajudar as pessoas a não destruírem a si mesmas”, diz Steve Leahy, xerife do condado, que acrescenta: “A verdade é que as cadeias não reabilitam ninguém.”
 
Ohio foi um dos primeiros estados americanos a serem tomados pelos opioides e é um dos mais afetados pelo que depois se tornou uma epidemia. As mortes por overdoses no estado subiram de 2.110 em 2013 para 4.854 em 2017, quando aconteceu o pico. Em 2019, foram 3.957, ou 34 mortes por 100 mil habitantes, taxa comparável à da letalidade causada pela violência (homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes provocadas pela polícia) no estado do Rio de Janeiro.
 
Clermont, a cerca de uma hora de carro de Cincinnati, terceira maior cidade do estado, tem 200 mil pessoas em áreas rurais ou suburbanas. De 2009 a 2018, 700 morreram de overdose. O governo local começou a modificar sua resposta à crise em 2013, com a criação da Força-Tarefa para Opioides. Desde o pico de 105 mortes em 2015, o número vem caindo.
A epidemia dos opioides sobrecarregou financeiramente os condados. Os custos vão desde resgatar e tratar os dependentes até abrigar crianças separadas dos pais por morte ou internação - isso sem contar o pagamentos de legistas para os mortos por overdose.
 
Duas características da crise dos opioides ajudam a explicar por que a epidemia fez com que os Estados Unidos começassem a mudar de visão sobre as drogas. A primeira é o fato de o abuso ter se distribuído de forma inédita, geográfica e socialmente: começou em áreas rurais, mas depois passou a atingir também subúrbios e cidades grandes, arrastando pessoas dos mais variados perfis e classes sociais. A imagem da epidemia não ficou colada a apenas um grupo, como aconteceu com o crack nos anos 1980 e 1990, que se tornou estereótipo de um problema de negros de áreas urbanas degradadas.
 
A segunda característica é a letalidade dos opioides na comparação com outras drogas. Uma das principais ferramentas para evitar as mortes é a naloxona, ou Narcan. É um medicamento que hoje está disponível como spray nasal. Ele reverte os efeitos de overdoses por opioides, quando a droga causa depressão do sistema nervoso central e o usuário simplesmente para de respirar. A naloxona, que não causa dependência, “tira” o opioide dos receptores do cérebro temporariamente, permitindo que a pessoa volte a respirar.
 
“O Narcan mudou o jogo”, diz o xerife Leahy, que, assim como outros ouvidos pela reportagem, vê no remédio um dos principais responsáveis pela redução no número de mortes por overdoses de opioides. Os policiais comandados pelo xerife têm sempre o remédio com eles.
Outra mudança importante é que o tratamento com auxílio de remédios (conhecido pela sigla MAT, de “Medically-Assisted Treatment”) passou a ser o padrão para a recuperação de dependentes. A metadona é prescrita há décadas para auxiliar a controlar a fissura por heroína e outros opioides, mas agora há também a buprenorfina (substância que passou a ser utilizada no tratamento substitutivo da dependência de opiáceos, assim como a metadona) e a naltrexona, que ajudam a controlar os sintomas da retirada das drogas do organismo.
 
“Quando começamos a oferecer o MAT, por volta de 2009, ligamos para o departamento estadual de saúde mental e drogas e eles disseram que não apoiavam esse tipo de tratamento”, conta Karen Scherra, diretora-executiva do conselho de saúde mental e recuperação do condado de Clermont. Hoje, o MAT é política pública estadual em Ohio.
Quem chega ao centro de tratamento Maryhaven (que em português até poderia significar algo como “Abrigo da Maria), em Columbus, capital do estado, é recebido por um policial. Mas, mesmo que a pessoa chegue portando drogas ou com um mandado de prisão em aberto, não será detida e receberá tratamento.
 
Nate Blake, 42, por exemplo, passou por Maryhaven cinco vezes. E desde a última, há dez anos, está sem usar drogas. “Algumas pessoas pensam que se internar vai te consertar, mas é só o começo de um processo, que para mim durou seis anos. Demorou até eu entender que nasci com a doença da dependência química e que eu nunca mais poderia usar nenhuma substância.” Ele começou a usar drogas – várias, inclusive opioides – aos 19 anos. “Decidi parar de usar heroína quando meu melhor amigo morreu de overdose em meus braços. Aí pensei: vou só beber e usar crack como uma pessoa normal.”
Quando se internou pela última vez, usou remédios para a abstinência de álcool. Ficou sete semanas em tratamento residencial e depois meses em uma moradia para pessoas em recuperação. Mas colocar sua vida nos trilhos levou muito mais tempo.
“Eu nunca tinha sido adulto de verdade. Quando parei de usar drogas, só fazia bicos, porque tinha certeza de que, se arrumasse um emprego, ia dar errado. Só depois de quatro ou cinco anos sóbrio é que percebi que poderia trabalhar com algo fixo”, conta. “Tudo me dava medo, a perspectiva de ir a um encontro romântico ou a uma entrevista de emprego sóbrio era aterrorizante”, diz Nate. “São poucos os que conseguem fazer isso tudo sozinhos.”
Hoje ele usa sua experiência para ajudar os outros: trabalha como conselheiro em Maryhaven, conduzindo encontros em grupo e acompanhando pacientes a audiências, ajudando-os a resolver burocracias e a navegar a vida.
 
O chamado Centro de Estabilização de Dependência está sempre aberto para receber pessoas que desejam se tratar imediatamente. No térreo, os pacientes são estabilizados, geralmente em até 12 horas. Depois sobem ao terceiro andar, onde fica o setor de gerenciamento de abstinência. A vasta maioria opta pelo MAT: toma remédios e participa de terapias (em grupo e individual), grupos de apoio e outras atividades.
“Quando você para de usar, vem uma enxurrada de lembranças, de culpa e vergonha, o que pode ser mais difícil de enfrentar do que os sintomas físicos, como dores, náusea e sudorese, entre outros”, diz Daniel King, coordenador administrativo de Maryhaven.
 
Em uma ala ficam os homens e, em outra, as mulheres. Nas pontas de cada corredor há cadeiras e uma TV onde, entre uma atividade e outra, os pacientes assistiam novelas no dia da visita da reportagem, uma terça à tarde. O ambiente não chega a ser alegre, mas é tranquilo. Os funcionários são gentis, simpáticos. As paredes são decoradas pelos próprios pacientes com desenhos e frases motivacionais.
 
Depois dessa fase, os pacientes seguem para o tratamento residencial em outro prédio, onde podem ficar por até 21 dias. Muitos precisam, ao longo da recuperação, de diversos serviços para os quais Maryhaven os encaminha: tratamento para outros problemas de saúde; ajuda para obter plano de saúde, benefícios, emprego ou casa; auxílio para encerrar pendências judiciais; e serviços familiares, para quem perdeu a guarda dos filhos, por exemplo.
 
“Nas primeiras semanas de abstinência, temos de gerenciar as necessidades físicas do paciente. É dessa parte que os usuários têm mais medo. Mas nas semanas seguintes muitas vezes fica ainda mais difícil, porque os boletos começam a chegar, literal e metaforicamente. Contas, audiências judiciais, problemas no trabalho, questões familiares – o estresse é enorme”, diz o médico Mike Kalfas. Ele atende usuários de drogas há 23 anos no norte do Kentucky, perto da fronteira com Ohio, região também bastante atingida pelos opioides. “É nesse segundo momento da recuperação que muitos têm recaídas”, diz ele.
A trajetória de alguém que tenta deixar de usar drogas não se resume normalmente a uma única internação seguida de sucesso. Alguns seguem tomando os remédios por meses ou anos, outros se internam seguidas vezes. Kalfas compara com uma doença crônica, como diabetes, que tem que ser gerenciada pelo resto da vida do paciente.
 
Sam Sherbourne, 29, está no início dessa caminhada de recuperação. Ela usava metanfetamina e fentanil havia cerca de dois anos quando foi presa, grávida.
“Meu maior medo era ter o bebê na prisão, porque o Departamento de Serviços para Crianças poderia entrar no meio e tirar a guarda”, diz ela. O juiz encaminhou Sam para tratamento na First Step Home (Casa do Primeiro Passo, em inglês), em Cincinnati, em vez de encaminhar para a prisão. “Eu estava pronta para ser ajudada. Foi um alívio”, afirma ela.
A First Step Home é um centro de tratamento residencial só para mulheres que ocupa um quarteirão em um bairro tranquilo. Lá, as pacientes podem ficar com os filhos pequenos enquanto se recuperam.
Sam deu à luz Maleah, em um hospital próximo, dias após chegar, e agora está na ala de pós-parto da First Step Home. Ela toma buprenorfina e participa de terapias individuais e em grupo. Maleah, que tinha dois meses à época da visita da reportagem, também passa por consultas semanais, porque nasceu com problemas de saúde decorrentes do uso de drogas na gestação.
A história de Sam ilustra outra mudança importante na política pública: no início da epidemia, milhares de crianças eram separadas dos pais dependentes químicos; hoje, ao contrário, é mais frequente oferecer tratamento e assistência social, enquanto se tenta manter a família unida. Mesmo no caso de grávidas, avança o entendimento de que é melhor manter mãe e bebê juntos, se for possível e seguro para a criança.
 
As mortes por overdose nos EUA, depois de caírem em 2018, subiram 4,6%, para quase 71 mil em 2019. Entre as explicações estão a disseminação do fentanil, mais potente, e da metanfetamina, para a qual não existe MAT nem remédio que reverta overdoses.
A chegada do coronavírus ameaça os avanços, porque, com medo da Covid-19, menos pessoas têm aparecido para se tratar. O isolamento social, o tédio, o desemprego – cerca de 30 milhões no país haviam perdido seus empregos até o final de julho – e a falta de reuniões presenciais dos Alcoólicos Anônimos e dos Narcóticos Anônimos favorecem as recaídas, segundo médicos e assistentes sociais.
Usar opioides sozinho em casa também é mais perigoso, já que não há a quem pedir socorro ou quem administre Narcan, em caso de overdose. Ainda não há dados consolidados, mas especialistas de Ohio afirmam ter notado mais mortes por overdose desde o início da pandemia.
 
Leia mais na Folha (Paula Leite // Danilo Verpa).

 
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