O UOL solicitou ao Observatório Covid-19 BR um estudo exclusivo sobre o número real de mortes pelo coronavírus. E o resultado impressiona, quando é comparado com o número oficial divulgado pelo governo federal.
O Observatório Covid-19 BR - que reúne pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras - chegou a calcular que, em um cenário mais pessimista, o número pode ser até nove vezes maior do que o dado oficial. O levantamento levou em conta a demora entre as ocorrências das mortes e a entrada delas nas estatísticas do governo.
O estudo foi feito com dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde até a última quarta-feira (dia 15), quando o país registrava 1.736 mortes. Mas com base nesse novo cálculo, o país já poderia ter entre 3.800 e 15.600 mortes.
Ontem, dia 17, esse número oficial foi atualizado para 2.141, porém não é possível usar nele a projeção feita no observatório, porque ela levou em conta o cenário da última quarta-feira. Para fazer a análise, o observatório utilizou as informações da data de óbito apresentadas pelo governo nos boletins dos dias 29 e 30 de março e 2, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 13, 14 e 15 de abril.
Confirmação mais de 10 dias depois
Com base nos boletins divulgados pelo Ministério da Saúde, por exemplo, é possível observar que a quantidade de mortes atribuída ao dia 3 de abril variou de 21 a 77 no período de duas semanas já que os resultados dos testes demoram a sair. Exames feitos depois indicaram que ocorreram mais mortes por coronavírus nessa data do que se sabia no próprio dia 3.
Nos comunicados no Ministério da Saúde, há atualizações sobre a quantidade de pessoas que morreram pelo novo coronavírus por data. Os dados usam as informações do SIVEP-Gripe (Sistema de Informação de Vigilância da Gripe). Nesses informativos, foram apresentadas as quantidades de mortes em cada dia, desde a primeira. O primeiro óbito confirmado, aliás, mostra muito bem o que é essa demora. No dia 17 de março, foi informado que tinha ocorrido no dia anterior. Duas semanas depois, já em abril, descobriu-se que outra morte foi a primeira no Brasil e que tinha acontecido no dia 15 de março! Houve caso em que a morte demorou quase um mês para entrar nas estatísticas.
De acordo com o observatório, 53% das mortes por coronavírus no Brasil demoram dez dias ou mais para serem notificadas e constarem em boletins. Portanto, menos da metade dos óbitos é confirmada antes de dez dias da data de óbito. Nesses cálculos, foi utilizado o nowcasting, um modelo de estimativa do presente olhando o passado recente. A projeção leva em conta quantos óbitos devem existir considerando-se uma distribuição de atrasos. "Nós olhamos quanto tempo, em média, demora entre o óbito e o anúncio oficial do óbito pelo ministério", explica o doutorando do IFT (Instituto de Física Teórica) da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Rafael Lopes Paixão da Silva, membro do Observatório Covid-19 BR. "Com isso, a gente tem a distribuição dos atrasos."
Cenário de 10 dias
Com esses dados, o observatório projetou dois cenários. No mais conservador, em que óbitos demorariam até dez dias para serem informados, o país teria cerca de 122% a mais de mortes do que o divulgado. Usando os dados de 15 de abril, isso levaria ao cálculo de cerca de 3.869 óbitos - 2,3 vezes o número anunciado oficialmente na ocasião, que foi de 1.736! O país já estaria, portanto, no mesmo patamar da China, onde tudo teria começado, no final do ano passado.
Na quarta-feira, dia 15, a China contabilizava mais de 3.300 mortes (o dado foi revisado ontem para cerca de 4.600). O coronavírus chegou ao Brasil no final de fevereiro.
20 dias de demora
Em um cenário em que mortes por coronavírus demoram até 20 dias para serem contabilizadas, o estudo projeta que o país teria pelo menos 801% mais de óbitos, ou seja, cerca de nove vezes o dados oficial. "Isto significa que, para cada morte notificada, teríamos outras oito mortes a mais ainda não registradas". Assim, o país já poderia ter mais de 15.648 mortes! Esse número é próximo ao de óbitos registrados nos países em pior situação na Europa em 15 de abril: França: 17.167 Espanha: 18.579 Itália: 21.647
Infelizmente, são poucos os boletins com data do óbito, o que impossibilita decidir qual o cenário mais provável entre as duas opções. O Observatório lembra que "os resultados são muito sensíveis ao tempo máximo para a notificação que se assume, sempre se deixam alguns casos extremos de fora com esses recortes". O estudo conclui que, mesmo com a sensibilidade dos números, eles mostram, em um cenário conservador, que há "atraso" para confirmação dos óbitos.
Subnotificação "normal"
"A gente sabe que subnotificação não é algo raro, é normal", diz Rafael Silva. Ele avalia que algumas das justificativas para os dados apresentados são: demora nos exames, tempo de informação sobre os óbitos e processo de atualização de sistema de dados das secretarias de saúde, que repassam ao ministério. "Até essas mortes serem confirmadas no ministério, isso leva algum tempo", comenta.
Participam da iniciativa do Observatório Covid-19 BR pesquisadores de universidades como Unesp, USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade de Campinas), Unb (Universidade de Brasília), UFABC (Universidade Federal do ABC), Universidade de Berkeley, dos Estados Unidos, e Universidade de Oldenburg, na Alemanha, entre outras.
Olho nos casos
Para o médico infectologista Mateus Westin, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), saber o número de casos de infectados é mais importante do que a quantidade de mortes, porque permite tomar medidas de prevenção à transmissão da doença.
Até sexta-feira (dia 17), o Brasil tinha 160 casos a cada um milhão de brasileiros. Na mesma proporção, são 10 mortes por milhão.
Westin - que não faz parte do grupo do observatório - diz que "o número de mortes por coronavírus é um marcador tardio" sobre a circulação do vírus. Para ele, ao observar apenas o óbito, estaríamos "analisando a situação com três a quatro semanas de atraso", considerando o início do período na fase assintomática da doença. No documento "Diretrizes para Diagnóstico e Tratamento da covid-19", de 6 de abril, o Ministério da Saúde disse que "o reconhecimento precoce de novos casos é primordial para a prevenção da transmissão" do coronavírus.
Para que se tenha uma real dimensão da presença do novo coronavírus no país, Evaldo Stanislau, diretor da Sociedade Paulista de Infectologia, reforça a importância de se testar a população. "Somente assim poderemos conter com mais efetividade os casos". Para ele, isso "teria um impacto enorme". Isso é mais importante do que ver estatísticas terminais e subestimadas, como casos e óbitos.