Rubens Ricupero ninguém esquece por causa da frase "Eu não tenho escrúpulos. Eu acho que é isso mesmo: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde". Não deu pra esconder e acabou tendo que renunciar ao cargo de “ministro do plano real”. Mas ele fez bem mais do que isso e atualmente é diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado e presidente do Instituto Fernand Braudel, que promove pesquisas, debates e publicações sobre problemas institucionais como educação e segurança, política econômica, política energética, desenvolvimento econômico e relações internacionais. Mostrou que está atento às tragédias bolsonáricas. Em entrevista por e-mail a Cássia Almeida, do Globo, foi bem claro: “A atitude do governo Bolsonaro contraria os interesses comerciais brasileiros”.
É verdade que o país inteiro está consciente disso, mas Ricupero fala com conhecimento de causa... e efeito. Para ele, essa nova condução da diplomacia com alinhamento aos Estados Unidos pode prejudicar exportações do Brasil. Simples assim. Diz, por exemplo, “que a mudança na postura diplomática brasileira, de apoio aos Estados Unidos após a escalada de tensões com o Irã, trará consequências negativas para o comércio exterior brasileiro”. Ele destaca que o presidente americano, Donald Trump, tem ameaçado exportações do Brasil, enquanto o Irã é grande cliente do nosso agronegócio. E alerta que o Brasil voltou a ficar vulnerável nas contas externas, o que já causou crises cambiais no passado, limitando o crescimento. Em poucas palavras, está tudo errado nesse “governo” Bolsonaro.
A seguir, a entrevista. (12/01/2020 - 04:30)
Rubens Ricupero, o Brasil conhece bem, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). Rubens Ricupero afirma que a mudança na postura diplomática brasileira, de apoio aos Estados Unidos após a escalada de tensões com o Irã, trará consequências negativas para o comércio exterior brasileiro. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, o diplomata de carreira lembra que Donald Trump tem ameaçado exportações do Brasil enquanto o Irã é grande cliente do nosso agronegócio. E alerta que o Brasil voltou a ficar vulnerável nas contas externas, o que já causou crises cambiais no passado, limitando o crescimento.
Quais os impactos do conflito para a economia mundial?
Há basicamente dois cenários possíveis. O primeiro é que o conflito seja contido no nível atual, dado pela resposta limitada do Irã e a reação comedida de Trump (Donald Trump, presidente dos Estados Unidos). Os partidários do presidente americano alegam que o Irã, debilitado pela ação cumulativa das sanções econômicas e pelos recentes protestos internos, não terá condições de ir além de uma reação fraca e simbólica como o ataque sem vítimas às bases dos Estados Unidos no Iraque. De acordo com essa visão, passado algum tempo, o Irã será obrigado a se sentar à mesa de negociação, o que levaria, cedo ou tarde, à sua capitulação. Nesse caso, os impactos negativos sobre a economia mundial seriam de pouca monta e de curta duração. O cenário oposto é o dos que pensam que o governo iraniano apenas dissimula o jogo, limitando-se, num primeiro momento, a uma reação débil a um golpe que não esperava, enquanto prepara com vagar alguma represália de envergadura, que poderia visar a personalidades do governo americano ou ações no território dos Estados Unidos. Se isso for verdade, haveria uma aparência de normalidade por um tempo mais ou menos longo até que a situação se deteriore novamente. De todo modo, enquanto não se registrar uma verdadeira distensão na relação Estados Unidos-Irã, a incerteza prevalecerá e com ela suas consequências de desestímulo à retomada da economia mundial.
O comércio mundial tende a diminuir e o protecionismo se espalhar?
Independentemente do que ocorra no conflito com o Irã, o comércio internacional já acusou, por outras razões, declínio sensível em 2019, conforme atestado pela Organização Mundial de Comércio. Em outubro, a OMC calculou que o comércio no ano passado se expandiria apenas 1,2% (em contraste com a estimativa de 2,6% feita em abril de 2019). Para 2020, a OMC reduziu a previsão de crescimento para 2,7% (abaixo dos 3% originalmente esperados). O motivo fundamental para a baixa nas estimativas deriva das tensões desencadeadas, sobretudo, pelo conflito Trump-China e suas consequências na Ásia e outras regiões. Espera-se até meados de janeiro a assinatura da primeira etapa do acordo entre Estados Unidos e China para resolver o contencioso entre os dois países. Dependendo da confirmação do acordo, de sua consolidação e de sua eventual expansão a etapas novas, o comércio mundial poderia ou não ganhar algum fôlego. Uma nota de necessária cautela é o efeito que terá sobre o comportamento de Trump a proximidade das eleições nos Estados Unidos. Essa proximidade o levará a moderar seu discurso e ação protecionista em relação não só à China, mas também à União Europeia, ao Japão, ao México, ao Canadá, a outros parceiros? Ou, ao contrário, tentará expandir as exportações americanas a fim de reduzir o déficit comercial, como já conseguiu no fim de 2019? Dada a imprevisibilidade do personagem, é arriscado formular previsões sobre a possibilidade e intensidade de uma recuperação do comércio internacional em 2020.
A tensão global vai afetar a economia brasileira?
No ano passado, a economia mundial em nada ajudou a economia brasileira, uma vez que registramos queda acentuada nas exportações, nas importações, no saldo comercial e outros indicativos. Em caso de agravamento do conflito com o Irã, é claro que o impacto sobre a recuperação da economia brasileira se faria sentir de modo mais forte. Sobretudo porque não se deve esperar a curto prazo nenhuma melhora no comércio com a Argentina, importante para a recuperação da indústria .
A mudança na diplomacia brasileira, de abandonar a neutralidade nesses conflitos pode reduzir as exportações?
O endosso pelo Brasil à ação agressiva de Trump cria riscos para as exportações brasileiras ao Irã, um dos dois principais importadores de produtos agrícolas (milho, proteínas animais). Além dos aspectos morais (apoio a um crime, a um assassinato, a um ato de terrorismo de Estado) e políticos (alinhamento temerário com política capaz de conduzir à guerra), a atitude do governo Bolsonaro contraria os interesses comerciais brasileiros, já que hostiliza um mercado importante por meio do endosso a um país, os Estados Unidos, que são o único parceiro a já aplicar sanções ilegais contra nossos produtos (aço, alumínio), o único a nos ameaçar de novas sanções (as declarações sobre desvalorização da moeda), o único a descumprir promessas anteriores (abertura do mercado à carne bovina), o único que talvez dentro de poucos dias alcançará um acordo com a China capaz de desviar compras chinesas de produtos brasileiros (soja, milho, carnes, etanol, algodão) para um nosso concorrente, os americanos. Onde está nisso o interesse nacional?
O déficit em transações correntes está em 3%, há risco?
Existe perigosa complacência de tentar minimizar a seriedade potencial da deterioração do balanço de pagamentos mediante dois argumentos: de que as reservas ainda se situam em nível confortável; que o Investimento Estrangeiro Direto (IED) tende a superar os déficits mensais em conta corrente (contas com o resto do mundo). Esses argumentos buscam esconder o mais grave: a dinâmica desfavorável de quase todos os indicadores. O nível das reservas é retrato do passado, reflete a fase em que o país acumulava excedentes significativos na balança comercial. As reservas tendem agora a diminuir até mesmo em razão das ações do Banco Central contra a volatilidade excessiva do câmbio, como ocorreu faz pouco tempo. Infelizmente, em 2019, tivemos vários fatores convergindo para agravar a situação da balança: queda sensível no volume e no valor das exportações; redução no valor e volume das importações, resultando em contração do volume do comércio nos dois sentidos; expansão significativa do déficit em transações correntes; insuficiência dos investimentos estrangeiros diretos para cobrir o déficit em alguns meses; saída do Brasil da soma recorde de mais de US$ 44 bilhões (fluxo cambial), em desmentido à retórica oficial relativa ao interesse de investidores estrangeiros por ativos brasileiros. O que torna o quadro mais preocupante é que, no ano passado, o comércio exterior se beneficiou de fatores que não se devem repetir, entre eles, o aumento das compras chinesas de produtos agrícolas do Brasil devido ao conflito agora em vias de superação com o governo Trump, a intensificação de importações chinesas de carnes brasileiras durante a fase mais intensa da incidência da peste suína. Outro aspecto que convém não esquecer é que, em razão do crescimento anêmico da economia brasileira em 2019 (1,1% talvez), não se fez sentir pressão de aumento das importações, o que seguramente mudará caso o ritmo de expansão se acelere. Todos esses fatores mostram que o Brasil está em vias de perder um dos poucos indicadores positivos que a economia ostentava: a situação do balanço de pagamentos, origem de muitas das crises brasileiras no passado.
O que se pode fazer?
Para essa ameaça, não existe remédio seguro a curto prazo. A liberação comercial não é uma panaceia; mesmo que o país consiga acelerar a assinatura de acordos comerciais, num primeiro tempo isso vai agravar a situação da balança dada a falta de competitividade crônica de muitos setores de nossa economia. Daí a gravidade das ações do governo em meio ambiente, Amazônia, povos indígenas, evocação de AI-5, que assustam investidores e parceiros econômicos no exterior.
Se o conflito se agravar, a cotação do petróleo dispara?
Se houver um conflito de alta intensidade no Oriente Médio, é óbvio que as cotações do petróleo vão disparar. É verdade que o aumento de produção petrolífera nos Estados Unidos e em outros países, inclusive o Brasil, reduziu o grau de vulnerabilidade quase total em relação ao Oriente Médio que existia nos anos 1970, quando houve os dois choques do petróleo (1973 e 1979). Mesmo assim, um grande conflito trará graves perturbações ao tráfico marítimo, ao preço do petróleo, ao crescimento da economia.
O acordo do Mercosul com União Europeia corre risco?
O acordo Mercosul-União Europeia se encontra numa espécie de “banho-maria”. Falta terminar parte considerável do acordo, que, é bom lembrar, ainda não foi nem sequer assinado. O que se concluiu no ano passado foi a negociação geral. Nas condições atuais de conflito do governo brasileiro com a França de Macron (Emmanuel Macron, presidente da França), à luz das resoluções votadas pelos parlamentos na Áustria, na Irlanda, em outros países, não se vislumbram condições a curto prazo para concluir o que falta ao acordo e submetê-lo à aprovação e ratificação primeiro do Parlamento Europeu, em seguida dos parlamentos dos 27 países membros.
Os organismos multilaterais estão perdendo força, principalmente a OMC?
O enfraquecimento da OMC já é um fato. Desde dezembro, o Órgão de Apelação da OMC está impossibilitado de operar em razão da oposição dos Estados Unidos à substituição dos juízes que terminaram o mandato. O enfraquecimento da OMC é, acima de tudo, obra do governo Trump, ao qual o governo brasileiro se subordina de forma automática e contrária aos interesses nacionais. É o que poderemos ver em breve, caso o acordo a ser assinado pelos americanos com a China provocar, como se espera, desvio de comércio de produtos agrícolas brasileiros em favor de concorrentes americanos. Nessa hora, o governo brasileiro não terá a quem se queixar pois o sistema de solução de litígios da OMC terá sido já desmantelado por iniciativa de Trump.