02/01/2020 às 12h51min - Atualizada em 02/01/2020 às 12h51min

​A DEMOCRACIA POSTA EM QUESTÃO

O POVO É CONTRA A DEMOCRACIA?

 
Ao repercutir uma pesquisa sobre democracia e ditadura, o jornal Folha de São Paulo começa 2020 afirmando que o povo prefere ditadura do que democracia.
Vamos analisar isso melhor.
 
O apoio à democracia como melhor forma de governo caiu de 69%, em 2018, para 62% no final do ano passado. Sendo que o apoio maior vem daqueles que ganham mais de 10 salários, representando 81%, e o apoio menor, de apenas 53%, dos que ganham até dois salários – genericamente chamado “povão”. Também cresceu de 13% para 22% o índice daqueles para quem tanto faz democracia ou ditadura.
 
Afirmar simplesmente que metade do povão prefere ditadura à democracia é tirar uma conclusão absoluta de uma resposta isolada da pesquisa.

Para o povo, o regime político que interessa concretamente é aquele que lhe garanta um presente digno e um futuro seguro para seus filhos. Para esse povão de nada adiante uma “democracia” que não lhe garanta isso ou uma ditadura que lhe retire o pouco que tem.
 
Em seu discurso de posse, em janeiro de 2003, Lula prometeu acabar com a fome no Brasil. E ele consegui, pois fez muito mais do que isso ao inserir preto, pobre e indígena na  universidade pública.

Não por acaso a matéria da Folha mostra que nesse período o apoio à democracia foi maior.
Mas o apoio à democracia começa a cair a partir do golpe contra a presidenta Dilma e principalmente no primeiro ano de Bolsonaro, em virtude da crise, desemprego, corrupção e violência serem jogados no colo de Lula e do PT.

Como a esquerda chegou ao poder por meio do voto direto, os golpistas usaram a Lava Jato e a grande mídia para desmoralizar a democracia, associando-a a políticos corruptos. Ao mesmo tempo o autoritarismo e até mesmo a ditadura eram defendidos como os regimes mais indicados para se enfrentar a corrupção e a violência. Uma frase da época diz tudo: “Basta tirar Dilma”. Foi assim que as elites dominantes conseguiram afastar boa parte do povo da democracia, o único regime com que pode mudar a sua dura realidade.
 
No entanto, bastou um ano de governo para parcelas significativas dos segmentos de baixa renda (até 2 salários), que tinham votado em Bolsonaro, constatarem que ele governa exclusivamente para os ricos, não acaba com a corrupção e fez aumentar a violência contra o pobres.

O Datafolha mostra que, entre os que recebem até 2 salários, a reprovação do governo Bolsonaro atinge 42%, praticamente o dobro dos 22% que aprovam.

A pesquisa confirma o caráter de classe da reprovação a Bolsonaro na medida em que ela é alta justamente naqueles segmentos mais massacrados pelo governo, aqueles que foram empurrados para o desemprego, o trabalho informal e intermitente e que viram seus direitos sociais e trabalhistas virarem pó.

Entre os desempregados, a reprovação é de 48%, enquanto apenas 21% o aprovam. Nos que fazem “bico”, 41% reprovam e 29% aprovam. Entre os assalariados sem registro, 35% reprovam e 25% aprovam. No entanto, entre os assalariados que ainda têm carteira assinada a aprovação de 31%, quase empata com a reprovação de 34%.
 
A base social de Bolsonaro que compõe os 30% de sua aprovação se concentra nas parcelas que ganham mais de 10 salários e entre 5 a 10 salários. Nesses segmentos a aprovação atinge 44%.
 
Vivendo no patamar da necessidade econômica, o chamado povão forma sua opinião política muito em função de suas condições materiais de vida, nomeadamente emprego, salário e custo de vida. Embora também se lute por mais direitos e mais cultura e educação. Por mais influência que as fake news tenham, o estômago acaba falando mais alto do que a cabeça, como mostra a crescente rejeição de Bolsonaro nesses setores.
 
Na história do Brasil, a maioria mais pobre da população (a que ganha até 2 salários), sempre foi excluída socialmente e tratada como subcidadãos, à exceção no breve lapso de tempo do governo Lula/Dilma.

Por esse motivo, a sua noção de democracia é diferente do entendimento que dela tem as classes médias. 

Para o povão, a democracia começa com a garantia de um prato de comida, continua com o emprego, salário digno, acesso à saúde, educação, moradia até chegar ao respeito aos direitos individuais. A desigualdade social é tão grande que a democracia é entendida pelo povo como respeito aos direitos humanos.
 
Mas os que vivem com mais de 10 salários não sabem o que significa passar por necessidade. Eles já têm a sua “democracia” particular, que pressupõe a exclusão social da grande maioria. Como a concepção de democracia da esquerda parte da inclusão social e da superação de todo tipo de discriminação, somos chamados de “comunistas” pelos setores elitistas das classes médias, as mesmas que apoiam Bolsonaro.
 
Resumo da ópera: a esquerda não pode comprar como verdade o peixe podre e cheio de óleo divulgado pela mídia de que o povo prefere a ditadura, pois, se assim for, perderá todo sentido a nossa luta pela mobilização do povo contra o “ditador” Bolsonaro.
 
O desafio da esquerda, majoritariamente de classe média, é defender a democracia não tanto por seus valores abstratos, mas de modo mais concreto, que é como o povo sente a sua falta. O que significa o abstrato para quem não tem o concreto?

 
Val Carvalho


Arte de Mauro Brum

 
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