Em 2003, quando ainda era deputado pelo PTB, Bolsonaro criticou suposto investimento de ministro da Justiça na Suíça e disse que elite política assalta contribuinte. Ele se referia a supostas aplicações na Suíça do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Hoje, Bolsonaro tem mais poder, é presidente. E acaba de ser revelado que o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, e o seu presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, fizeram o que ele sempre condenou, mantêm offshores em paraísos fiscais.
Até agora está calado. Mas em 10 de setembro de 2003, Bolsonaro discursou assim (conforme registros de notas taquigráficas) na Câmara Federal: "A elite política assalta o contribuinte, envia o dinheiro para um paraíso fiscal, que aplica no Brasil, e as autoridades que assaltaram o país fazem gestões para que os juros sejam mantidos altos".
A existência das offshores de Guedes e Campos Neto foram reveladas nesse domingo, 3, por veículos como a revista Piauí e o jornal El País, que participam do projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ. O D&D reproduziu.
Os documentos fazem parte da Pandora Papers, investigação sobre paraísos fiscais promovida pelo consórcio. Os investimentos podem caracterizar conflito de interesses, segundo especialistas, e já levantam questionamentos entre congressistas.
"Por que colocou o dinheiro na Suíça? Por que quis gerar emprego para os olhos azuis, já que defende tanto os negros em nosso País?", questionou Bolsonaro em 2003. "Será que foi para aplicar na caderneta de poupança, como faz o nosso tão desgraçado povo? Não", afirmou.
Bolsonaro, na Câmara, ainda disse que o dinheiro levado ao exterior" só vai garantir o bem-estar do povo daquele país". "São autoridades como o ministro Márcio Thomaz Bastos, que tem poder nesta República e também teve no passado, que fazem com que os juros aqui continuem altos", declarou o então deputado.
Em 2005, durante apurações da CPI dos Correios, Thomaz Bastos informou à PGR (Procuradoria-Geral da República) que fez quatro transferências à Suíça, no total de R$ 15,5 milhões, entre 1994 e 2003. Também afirmou que pagou R$ 1,09 milhão de impostos à Receita Federal e registrou as movimentações no Banco Central. O ex-ministro da Justiça morreu em 2014 aos 79 anos.
No caso de Guedes e de Campos Neto, a Receita foi informada sobre as offshores. Mas há um questionamento sobre o conflito de interesse, já que ambos ocupam cargos públicos que lhes dão acesso à elaboração das leis que tratam como o Brasil vai lidar com esse tipo de empresa, bem como das regras que regem o fluxo de recursos entre o país e o exterior.
Segundo as reportagens, Guedes, sua esposa e sua filha são acionistas de uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, conhecido paraíso fiscal. Em 2015, ela tinha US$ 9,5 milhões (aproximadamente R$ 51 milhões, em valores atuais), detalham as reportagens. Em sua resposta às reportagens o ministro não deixa claro se enviou recursos à offshore após assumir a pasta.
Não é ilegal ter depósito em uma offshore, desde que declarada à Receita Federal, mas a falta de transparência desse tipo de empresa faz com que, frequentemente, elas sirvam para fins ilícitos, como ocultação de patrimônio. O líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), considerou os fatos como um “escândalo”, que violam o artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal, e afirmou que eles deveriam levar à demissão do ministro. Este artigo proíbe "investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas". Em nota, o Ministério da Economia disse que toda atuação privada de Guedes antes de entrar no governo foi devidamente declarada à Receita, Comissão de Ética pública e aos demais órgãos competentes. "O que inclui a sua participação societária na empresa mencionada. As informações foram prestadas no momento da posse, no início do governo, em 2019. Sua atuação sempre respeitou a legislação aplicável e se pautou pela ética e pela responsabilidade", disse o ministério. "Desde que assumiu o cargo de Ministro da Economia, Paulo Guedes se desvinculou de toda a sua atuação no mercado privado, nos termos exigidos pela Comissão de Ética Pública, respeitando integralmente a legislação aplicada aos servidores públicos e ocupantes de cargos em comissão. Cumpre destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal já atestou a idoneidade e capacidade de Paulo Guedes exercer o cargo, no julgamento de ação proposta pelo PDT contra o Ministro da Economia", afirmou ainda a pasta. Já Campos Neto afirmou, também em nota, que seu patrimônio foi construído com rendimentos ao longo de 22 anos de trabalho no mercado financeiro, inclusive com funções no exterior. "As empresas foram constituídas há mais de 14 anos. A integralidade desse patrimônio, no País e no exterior, está declarada à Comissão de Ética Pública, à Receita Federal e ao Banco Central, com recolhimento de toda a tributação devida e a tempestiva observância de todas as regras legais e comandos éticos aplicáveis aos agentes públicos", afirmou. "Não houve nenhuma remessa de recursos às empresas após minha nomeação para função pública. Desde então, por questões de compliance, não participo da gestão ou faço investimentos com recursos das empresas", disse.
Enfim, ‘Adão e Eva’ podem continuar no paraíso, comendo suas maçãs em paz...