29/03/2021 às 16h54min - Atualizada em 29/03/2021 às 16h54min

ERNESTO ARAÚJO NÃO TEVE CULPA

A POLÍTICA EXTERNA É DE BOLSONARO


Vamos ser honestos – Ernesto Araújo é (ou era) apenas mais uma das aberrações do governo Bolsonaro. Uma figura estranha, esquisita mesmo, mas sobretudo fiel à unidade de pensamento com Bolsonaro e todo o seu governo.

Deixou o comando do Ministério das Relações Exteriores nesta segunda-feira, 29, depois do forte ataque desfechado por deputados e senadores que exigiam uma mudança na política externa promovida pelo Itamaraty. O que motivou os parlamentares a esse ataque? Talvez apenas barganhar mais poder junto ao governo Bolsonaro. Ernesto Araújo, portanto, teria sido duplamente vítima: de sua ideologia minguada e da voracidade parlamentar.

Ele foi um nome de frente da ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo corria em suas veias e acabou acumulando um legado de polêmicas, de declarações controversas e uma gestão considerada ineficaz em vários aspectos.

'COMUNAVÍRUS'
Em abril do ano passado, Ernesto publicou um texto em seu blog pessoal onde afirmava, entre outras “viagens”, que a pandemia de Covid-19 poderia fazer parte de um "projeto globalista" que seria o "novo caminho do comunismo". Na época, o coronavírus já tinha matado 180 mil pessoas em todo o mundo. Ironicamente, os países comunistas despontaram entre os mais eficientes no seu combate... Chegou ao brilhante absurdo de lançar o neologismo "comunavírus" para se referir a um suposto "vírus ideológico" que estaria se sobrepondo ao coronavírus e fazendo "despertar para o pesadelo comunista" (!!!!!). Ele também condenou as medidas de contenção (lockdown), alegando que elas faziam parte de um projeto de "emancipação comunista" que teria encontrado na pandemia "um tesouro de opressão". Nesse ponto, o leitor tem direito a 30 segundos de gargalhadas.

No mesmo texto, ele comparou as restrições de movimentação estabelecidas aos campos de concentração nazistas (isso deve fazer parte da série “Acredite se Quiser”...). Ao ser criticado por lideranças judaicas, que exigiram pedidos de desculpas, Ernesto simplesmente ignorou e criticou a cobertura da imprensa sobre o caso. Você agora perguntará: “Como assim?” – uma pergunta que não tem nem merece resposta.

'PÁRIA INTERNACIONAL'
Em outubro do ano passado, durante uma cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas, Ernesto disse: "Se a atuação do Brasil na política externa faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária". Existe exemplo mais “louvável” para um jovem diplomata? Essa fala ocorreu após uma série de suas queixas contra o “multilateralismo” (quando vários países trabalham em conjunto sobre um determinado tema) e o que ele chamou de "covidismo", além de críticas a "um marxismo sem Deus" e ao globalismo (refere-se a vários sistemas com alcance além do mero internacional, usado por detratores da globalização, como movimentos populistas de direita).

Segundo Ernesto Araújo, apenas Bolsonaro e Trump haviam falado sobre liberdade na Assembleia Geral da ONU, que ocorrera um mês antes — na ocasião, o presidente brasileiro teria mentido sobre sua gestão na pandemia e sobre suas políticas ambientais, e o presidente americano defendeu que a China fosse responsabilizada pela Covid!!!

Nesse contexto, Ernesto Araújo afirmou que "talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e dos semicorruptos"!!!

AMBIENTE HOSTIL NO SENADO
Ernesto foi convidado pelos senadores para explicar os esforços da pasta que comandava para obter vacinas contra o coronavírus. Mas virou alvo de críticas pesadas contra a sua gestão e de pedidos para que deixasse o cargo "para ajudar a salvar vidas". Ao se defender, ele se emocionou e chegou a ficar com a voz embargada, afirmando que fez de tudo para ajudar o Brasil durante a pandemia. Não ficou claro como...

Uma semana depois, publicou parte do conteúdo de uma conversa privada que teve com a senadora Katia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, insinuando que a pressão que sofrera para deixar o ministério era resultado do lobby chinês sobre os congressistas. Na ocasião, 1 bilhão e meio de chineses abriram um pouco mais os seus olhinhos fechados, balançaram levemente a cabeça e deixaram passar um sorriso enigmático...

Os senadores reagiram imeditamente, claro. Levantou-se uma nova onda de críticas a Ernesto, acusado agora de cruzar "uma linha que não deveria ser ultrapassada" ao agredir "gratuitamente e desnecessariamente" o Senado. Ele chegou a ser chamado de "marginal" e descrito por Katia Abreu como "alguém que insiste em viver à margem da boa diplomacia, à margem do equilíbrio e à margem do respeito às instituições".

NI HAO MA? 
你好吗
Atenção, agora: o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo passou cerca de dez meses sem estabelecer diálogos com a embaixada da China no Brasil. Isso aconteceu depois de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho de Jair, fazer críticas públicas à China e de receber respostas duras do embaixador Yang Wanming. O premier Xi Jinping deve estar dando gargalhadas.

Em março de 2020, Eduardo Bolsonaro já tinha comparado a Covid-19 ao acidente nuclear de Tchernóbil, em 1986, insinuando que, assim como fez a União Soviética à época, a China poderia estar escondendo informações e deveria ser responsabilizada pela disseminação da doença. Yang reagiu dizendo que Eduardo fez um "insulto maléfico" e que o deputado teria contraído um "vírus mental". Será?

Em novembro, Eduardo voltou a criticar a China, associando o país à espionagem de dados por meio de tecnologias da rede 5G. Em nota, a embaixada chinesa manifestou "forte insatisfação e veemente repúdio" contra a declaração do deputado. Ernesto Araújo tomou as dores do filho do presidente e rompeu relações com Yang, inclusive repreendendo a embaixada pela reação que ele considerou "ofensiva e desrespeitosa".

O ex-chanceler ainda convenceu Bolsonaro a pedir a Pequim que substituísse seu embaixador no Brasil após as duas querelas. Ambas as solicitações foram ignoradas.

CRÍTICAS DENTRO DO PRÓPRIO ITAMARATY
Mais de 300 diplomatas publicaram uma carta nesse sábado, 27, em que pediam a saída de Ernesto Araújo. O documento acusava a política externa atual de causar “graves prejuízos para as relações internacionais e à imagem do Brasil”, citando "condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo com os códigos mais elementares da prática diplomática".

Os autores da carta não puderam se identificar devido à Lei do Serviço Exterior, que os impede de "manifestar-se publicamente sobre matéria relacionada com a formulação e execução da política exterior do Brasil” sem anuência prévia.

GAFE DA MÁSCARA EM ISRAEL
No início de março, durante uma visita a Israel, Ernesto protagonizou um episódio que acabou viralizando nas redes sociais. Ao ser chamado para posar para uma foto com seu equivalente israelense, Gabi Ashkenazi, ele foi alertado pela chancelaria do país para que pusesse uma máscara. Ernesto respondeu: “Oh, yes” e colocou a proteção.

DISCURSO NA ONU
Na sua fala no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em fevereiro, ele fez críticas às restrições adotadas para conter a pandemia e à censura em redes sociais. Relativizou as medidas de contenção e disse que "não se pode aceitar um lockdown do espírito humano" – coisa que aparentemente ele faz com frequência...

DEFESA DE ATAQUES À IMPRENSA
Ernesto defendeu a atitude de Bolsonaro que mandou a imprensa enfiar “no rabo” latas de leite condensado, após ser questionado sobre gasto de R$ 1,8 bilhão do governo federal em alimentos e bebidas no ano de 2020.
Segundo o ex-ministro, esse é o estilo do presidente. Questionado durante entrevista à rádio Jovem Pan, Ernesto afirmou que não achou infantil o fato ter dado risada após a fala de Bolsonaro ou endossado o grito de “MI-TO! MI-TO!” que veio em seguida.

ATRITOS COM MOURÃO
Em janeiro, o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que Ernesto poderia ser um dos substituídos na reforma ministerial. Na ocasião, a fala do general foi considerada uma forma de externar o sentimento que já dominava parte do setor militar e dos técnicos do Itamaraty que defendiam a saída do ministro.

Bolsonaro, à época, saiu em defesa de Ernesto e fez questão de afirmar que a escolha de ministros caberia somente a ele e que não precisava de "palpiteiros" em seu governo.

INVASÃO DO CAPITÓLIO NOS EUA
Ernesto publicou mensagens no Twitter nas quais condenava o ataque ao Congresso americano por apoiadores extremistas do ex-presidente Donald Trump. Segundo ele, porém, era necessário "reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral".

O ex-ministro ainda se referiu aos vândalos como "cidadãos de bem" e sugeriu "investigar se houve participação de elementos infiltrados" no episódio. Junto com a reação de Bolsonaro, para quem o Brasil vai "ter problema pior que os EUA” se não instituir o voto impresso para 2022, a declaração de Ernesto foi vista como criadora de possíveis novos obstáculos para a relação do governo brasileiro com Joe Biden.

CRÍTICAS À ARGENTINA
Depois que o Senado argentino aprovou, em dezembro, o direito de a mulher optar pelo aborto até a 14ª semana de gestação, Ernesto foi ao Twitter e, sem citar diretamente a Argentina, fez críticas à decisão histórica. O ex-ministro afirmou que "o Brasil permanecerá na vanguarda do direito à vida e na defesa dos indefesos, não importa quantos países legalizem a barbárie do aborto indiscriminado, disfarçado de 'saúde reprodutiva' ou 'direitos sociais'".

FALTA DE INTERLOCUÇÃO NA COMPRA DE VACINAS
Ernesto é apontado como um dos responsáveis pelo fracasso na negociação entre os governos brasileiro e indiano para a compra de um lote de vacinas contra o coronavírus. O avião que buscaria os imunizantes estava pronto para decolar no Recife enquanto o chanceler fazia um último apelo a seu homólogo indiano para a liberação de mais de dois milhões de doses. O pedido, no entanto, foi negado.

FALTA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
Quando a Assembleia Geral da ONU aprovou, em abril do ano passado, um acordo de cooperação internacional que visava garantir o acesso global a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos para enfrentar a pandemia de coronavírus, só o Brasil —na gestão diplomática de Ernesto—, os EUA e outros 12 dos 193 países-membros da entidade não apoiaram a resolução.

Tecnicamente, o governo brasileiro deixou de patrocinar a medida, mas não apresentou objeções. Na prática, entretanto, deixar de expressar uma posição clara sobre uma resolução demonstra falta de entusiasmo pela causa e, à época, a omissão foi interpretada como uma aceitação de mau grado.

Leia também na Folha e The Guardian.

 
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