20/07/2020 às 10h11min - Atualizada em 20/07/2020 às 10h11min

VOCÊ SE ACHA PROGRESSISTA?

LOGO, VOCÊ É POPULISTA.


“Os progressistas precisam acenar aos eleitores populistas para proteger a democracia”, é o que diz o professor Maciej Kisilowski, de 39 anos, da Universidade da Europa Central, em entrevista que a Folha publica hoje, dia 20. Ele defende concessões morais como o recuo estratégico para barrar o populismo.

 “A oposição brasileira deve olhar o que aconteceu na Polônia e nos outros países e parar de se enganar: os países são diferentes, mas o processo é o mesmo”, afirma. Para ele, a reeleição do presidente nacionalista Andrzej Duda, na Polônia, traz lições que deveriam ser seguidas pelos progressistas de outros países, se quiserem evitar que regimes autocráticos passem do ponto de não retorno.


A vitória de Duda por 51,2% a 48,8% de seu oponente, Rafal Trzaskowski, do partido liberal Plataforma Cívica, foi um “golpe mortal para a democracia liberal da Polônia”, diz ele. “Com uma vitória tão estreita, é muito provável que o partido do governo [PiS] acelere suas investidas sobre o Judiciário, sufoque o que restou da mídia independente e subjugue governos locais. Não convém jogar dados com seu futuro democrático”.

  • Brasil e Polônia têm contextos diferentes. É possível comparar o avanço do conservadorismo nos dois países?
  • Sim, há lições que são universais, e os políticos progressistas precisam aprender com o crescimento dos populistas. Assim como o comunismo mudou a política -impulsionando medidas sociais-democratas -, com a ascensão do populismo é preciso discutir que concessões morais somos capazes de fazer. Não podemos ignorar que quase 60 milhões de brasileiros votaram em Bolsonaro, assim como mais de 10 milhões de poloneses elegeram Duda.
  • Mas foram eleições muito polarizadas, com vantagem apertada.
  • Ainda assim o sinal é que para a maioria das pessoas racismo, xenofobia, homofobia e autoritarismo não são um problema, mesmo que eles não necessariamente concordem com esses valores. A oposição brasileira deve olhar o que aconteceu na Polônia e nos outros países e parar de se enganar. O perigo é acreditar que o Brasil é diferente, que é mais fácil parar o autoritarismo. Todos os países são diferentes, o processo é o mesmo.
  • Uma das lições que o sr. aponta no caso da Polônia é que a oposição progressista não se uniu de cara, no primeiro turno, concentrando esforços. Não é o esperado, já que disputam os mesmos eleitores? O que é preciso para essa união?
  • Eles precisam estar apavorados, precisam entender que é questão de vida ou morte. Foi o que ocorreu na Polônia nos anos 1980, quando a esquerda secularista se uniu à Igreja Católica tradicional e ao movimento trabalhista para formar o Solidariedade1. A situação estava tão ruim que sofisticados intelectuais, religiosos linha-dura e operários perceberam que, se não se juntassem, iriam todos para a cadeia.
  • Eles precisam entender que os autocratas de hoje adotaram a estratégia de erodir lenta e paulatinamente a democracia, em vez de promover golpes ou revoluções. Eles cozinham os sapos lentamente, até que seja impossível escapar. A cada nova eleição eles apertam um pouquinho, mas são meticulosos em manter as eleições, a aparência de competição, para legitimar o sistema. Nessa estratégia eles não tentam extinguir a oposição, mas enfraquecê-la e mantê-la impotente.

 

1 Movimento social de origem sindical que surgiu nos anos 1980 e pregava a resistência civil não violenta contra o regime comunista.

  • Foi o roteiro também na Hungria, certo?
  • Em todas essas neoditaduras; você pode colocá-las numa mesma linha do tempo. Putin2, na Rússia, e Chávez-Maduro3, na Venezuela, começaram nos anos 2000, Orbán4, em 2010, Jaroslaw Kaczynski5, em 2015. Todos eles te contam uma história de degradação do Estado de direito, de exaurimento das instituições.

 

2 Vladimir Putin chegou ao poder na Rússia em 1999, como primeiro-ministro, e deste então vem alternando termos como presidente e primeiro-ministro. Em 2018 foi reeleito pela quarta vez para a Presidência, até 2024, e uma manobra neste ano pode estender seu período no poder até 2036.

3 Hugo Chávez assumiu a Presidência da Venezuela em 1999 e promoveu mudanças constitucionais que lhe permitiram ficar no poder até sua morte, em 2013. Foi substituído pelo então vice-presidente Nicolás Maduro, que governa até hoje.

4 Desde que assumiu o governo húngaro como primeiro-ministro, em 2010, Viktor Orbán tem sido acusado de sufocar a oposição e a imprensa livre e enfraquecer a democracia em seu país.

5 Fundador do partido que governa hoje a Polônia, o ex-premiê Jaroslaw Kaczynski é o homem forte da política no país.

  • Uma história que o sr. vê sendo esboçada no Brasil?
  • É o mesmo processo. E, como em outros lugares do mundo, há uma elite política pensando que é única, sem perceber que o autoritarismo está agindo e se fortalecendo sutilmente, e por isso perigosamente.

 

  • Redes sociais e fake news ajudam nessa estratégia?
  • Sem dúvida, porque, com elas, os autocratas não precisam se preocupar em calar a oposição. Não precisam eliminar as outras vozes. Basta criar uma bolha dentro da qual só se ouve o que você diz. Os outros podem continuar falando, porque você cria um muro dentro do qual ninguém acredita neles. Quando o mundo era mais silencioso, a voz da oposição poderia ameaçar, mas agora há tanto barulho que basta você criar sua bolha.

 

  • O sr. mencionou fazer concessões morais. Como assim?
  • A oposição precisa levar a sério os eleitores populistas. Foi por causa da conversa de Trzaskowski sobre unidade e respeito pelos "poloneses comuns" que ele chegou tão perto de derrotar o PiS6, mais do que qualquer um antes dele. Mas ele não se dispôs a ir mais longe, para tranquilizar e enfrentar os medos e preconceitos do eleitorado do PiS.

6 O nacionalista Lei e Justiça (PiS) voltou a controlar o governo polonês em 2015.

  • A oposição teria que fazer então um recuo nas ideias progressistas?
  • Um recuo estratégico, para desarmar a polarização ideológica. A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, social-democrata, derrotou a extrema direita em 2019 emprestando algo da retórica anti-imigrante, por exemplo. Na Nova Zelândia, Jacinda Ardern7 governa graças a uma barganha faustiana com o populista Primeiro Partido. Na Áustria, Sebastian Kurz se aliou à direita radical para chegar ao poder e depois os alijou e se coligou com o Partido Verde. Trzaskowski não percebeu o quão profundamente o populismo de direita alterou o cenário político, de uma forma que não se pode esperar chegar ao poder sem um compromisso significativo com o outro lado do debate.

 

7 Primeira-ministra neo-zelandesa desde 2017, a trabalhista Jacinta Ardern formou um governo de minoria ao se aliar ao partido nacionalista NZ First, ou Primeiro Partido.

 

  • Ceder aos eleitores conservadores não seria trair seus apoiadores?
  • Os conservadores sabem que a sociedade avança numa determinada direção. O que eles querem não é vencer o debate, mas ter certeza de que a mudança não será imposta sobre eles. Querem alguém que trate seus medos como legítimos, que leve suas posições a sério. Veja como foi alto o comparecimento às urnas nas regiões mais conservadoras da Polônia, que garantiram a vitória a Duda. As pessoas se mobilizaram como nunca na história por medo que um modelo de sociedade ocidental fosse imposto a eles. Um político de oposição pode levar em conta esses sentimentos e valores, sem abandonar os seus.
  • Mas teria que frear políticas como direito ao aborto ou famílias homossexuais.
  • Uma boa saída para essas pautas é a descentralização. Em vez de fazer uma transformação ampla, mudar região por região, de acordo com a aceitação de cada parte do país, como na Austrália. O resultado final é o mesmo, mas progride por partes, sem agredir nem polarizar. 
  • O sr. diz que outra lição da eleição polonesa foi a de que não há como enfrentar o populismo fora dos partidos organizados. Mas há em vários países do mundo um cansaço dos eleitores em relação às classes políticas, uma atração pelos outsiders. Por que esses movimentos não são alternativa, na sua opinião?
  • Outsiders podem ser uma boa notícia em democracias saudáveis. Barack Obama, por exemplo, foi um grande modernizador do Partido Democrata nos EUA. Mas, num país a caminho da autocracia, o governo se organiza cada vez mais, enquanto a oposição se divide. Uma eleição tão disputada como a da Polônia mostra o quão cruciais são a estrutura, as equipes e o financiamento de campanhas eleitorais.
  • Nada foi mais prejudicial às perspectivas de Trzaskowski do que a campanha independente do apresentador de TV Szymon Hołownia, que se apresentou como o outsider que acabaria com o duopólio entre o PiS e a Plataforma Cívica. Isso dividiu o voto dos que queriam derrotar o partido do governo. Foi um desperdício de energia e de recursos escassos. Como em alguns doentes com coronavírus, tudo parece muito bem, você não sente nada, mas seu nível de oxigênio está caindo até derrubá-lo. Enquanto isso, o governo populista está muito longe do jogo democrático, distribuindo dinheiro para governos locais, dando benefícios extras a eleitores, bombardeando propaganda na mídia pública.
  • Temos que entender que as eleições parecem normais, mas não são. As regras não valem, não há eleição livre, e o efeito de um outsider nesse cenário não é outro que desviar recursos vitais numa batalha desigual. Mas também não adianta só manter estruturas partidárias fortes e fazer a política de sempre. Os eleitores estão corretos de se cansarem dos partidos, e é preciso dar resposta a isso.
  • O sr. falou de governos no caminho da autocracia. A estratégia para a oposição seria válida também nos que já vê como ditadura?
  • Essa é a gravidade, porque é muito fácil passar do ponto de não retorno. Na Hungria não há mais saída. Na Venezuela, Guaidó8 chegou perto de conseguir algo, mas entrou tarde demais no jogo. É incrível, vemos o país se desmoronando, erodindo, mas a clique [o termo significa um grupo fechado de indivíduos que compartilham interesses, mas costuma ser usado para designar facções políticas mais ou menos subterrâneas que urdem manobras mesquinhas] tem um poder tão grande que subjuga até Donald Trump.
  • Com as ferramentas de vigilância que existem hoje e as mídias sociais, uma vez instalada a ditadura, é muito difícil reverter. Se olharmos para a história, são raríssimos os casos em que o país resgatou a democracia. Há o Peru após Fujimori9, mas é muito mais comum o oposto. O Brasil ainda tem tempo para reagir, mas é um risco enorme a oposição acabar se omitindo, por acreditar que Jair Bolsonaro pode se enfraquecer com o passar do tempo.

 

8 Em janeiro de 2019, a Assembleia Nacional da Venezuela proclamou Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, mas Maduro continua atuando como líder do país.

9 Presidente do Peru de 1990 a 2000, Alberto Fujimori instaurou um regime autoritário e renunciou em meio a denúncias de corrupção.

  • Como saber se o ponto de não retorno foi ultrapassado?
  • Há medidas comparativas, como as da Freedom House, mas são indicadores conservadores em sua avaliação e só expõem um quadro que já se realizou. Há sinais como mudanças na Constituição, erosão da mídia, interferência no Judiciário. Para mim, o momento-chave é a segunda eleição. Se um populista consegue vencer depois de todas essas agressões à democracia, ele está recebendo uma ratificação da sociedade. E a elite é sempre oportunista. Quando percebe que este é o status quo, torna-se conivente.
  • Há cada vez menos vozes de oposição, e a autocracia se torna fato consumado. Os americanos mandam seus navios para o mar do Sul da China não porque queiram ocupar qualquer coisa lá, mas para manter viva a resistência. É um princípio fundamental da lei internacional que uma mudança não acontece se muitas partes se opuserem e evitarem o fato consumado.
  • Com a reeleição de Duda, acredita então que a Polônia ultrapassou o ponto de não retorno?
  • Ciência política não é física, mas os prognósticos são sombrios. Esse resultado foi um golpe mortal para a democracia liberal da Polônia. Com uma vitória tão estreita, é muito provável que o partido do governo acelere suas investidas sobre o Judiciário, sufoque o que restou da mídia independente e subjugue governos locais. Será extremamente difícil mudar a tendência à erosão democrática. É preciso um choque externo sério ou uma ação de dentro, como foi Gorbachev10 na União Soviética. Os progressistas deveríamos aprender uns com os outros enquanto é tempo. Não convém jogar dados com seu futuro democrático.

  

10 Escolhido secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética em 1985, Mikhail Gorbatchev promoveu reformas que encaminharam a URSS para o fim do regime comunista.

 

MACIEJ KISILOWSKI, 39

Professor de direito e estratégia da Universidade da Europa Central, em Viena. Tem doutorado em direito pela Universidade Yale, mestrado em economia e política pública pela Woodrow Wilson School, de Princeton, e especialização em gestão e estratégia pela Insead.

 

Entrevista a Ana Estela de Sousa Pinto

BRUXELAS

 

FolhaUol

 

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