28/04/2020 às 19h12min - Atualizada em 28/04/2020 às 19h12min

A TIRANIA DOS PODERES CONIVENTES

ESSA É A NOSSA CONJUNTURA


O Daqui&Dali recebeu esse trabalho de Marcelo Hoffman, de Teoria Política Contemporânea, sobre “A tirania dos poderes coniventes: O Brasil na conjuntura”, escrito pelo filósofo português Diogo Sardinha, (que já escreveu vastamente sobre Immanuel Kant, Gilles Deleuze e Michel Foucault) e que tem a distinção de ter sido o único presidente não francês da Collège International de Philosophie em Paris, uma instituição francesa de pesquisa e de formação para a pesquisa, fundada em 1983 por iniciativa de François Châtelet, Jacques Derrida, Jean-Pierre Faye e Dominique Lecourt.
 
Esse novo livro de Sardinha traz sua perspicácia filosófica para a atual situação política no Brasil. Contribui para uma lista crescente de livros que tratam do que chamam de declínio do Partido dos Trabalhadores, o PT, e a ascensão das forças de extrema-direita que garantiram a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018.
 
Diz ele:
“Uma tendência já óbvia nessa literatura é focar nos erros do PT em seu longo governo como uma das principais razões para a ascensão de Bolsonaro. Perry Anderson, por exemplo, traça esse curso em 'Brazil Apart: 1964–2019'”. Ele sugere que as ações e inações dos sucessivos governos do PT lançaram as bases para a vitória de Bolsonaro. Sardinha também se concentra no PT, mas difere de Anderson ao se concentrar em suas políticas, a fim de formular um conjunto de perguntas que sondam as estruturas mais duradouras da sociedade brasileira.
 
Sardinha pergunta o que haveria de tão perturbador nessas políticas ao ordenamento tradicional da sociedade brasileira. Será que foi por terem tocado em um ponto nevrálgico das elites na sociedade brasileira? O argumento central de Sardinha é que o PT acabou produzindo uma reação feroz, porque conseguiu diminuir sutilmente as lacunas entre os pólos de privilégio e desvantagem na sociedade brasileira. Ele é muito acrítico ao PT na elaboração de seu argumento, mas a amplitude de seu trabalho compensa essa lacuna. Sardinha faz grandes perguntas que estão no cerne da ordem da sociedade brasileira e sua resposta conceitualmente rica a essas questões tem implicações que se estendem além do Brasil.
 
A vitória de Bolsonaro teve como premissa o que Sardinha descreve apropriadamente como 'o banimento definitivo da vida social e política' (p. 54) de um formidável candidato à presidência. Esse candidato foi, é claro, o ex-presidente do Brasil e líder do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Sardinha nos lembra que Lula não foi apenas preso até sua libertação em novembro de 2019. Ele também foi proibido de concorrer como candidato à presidência, votar e até mesmo dar entrevistas à imprensa de dentro da prisão. Para Sardinha, os magistrados que baniram Lula conseguiram destruir a aparência de democracia no Brasil que o PT nutriu durante seus anos no poder. Esses magistrados não estavam sozinhos nessa conquista. Membros do Congresso, mídia, líderes empresariais, manifestantes de rua e militares participaram de pedidos frenéticos pelo banimento de Lula.
 
Para nos ajudar a entender essa reviravolta, Sardinha oferece sua própria reviravolta conceitual sobre um problema que ele reconhece que outras pessoas colocaram e resolveram. Esse problema diz respeito à diferença gritante entre a resistência do PT em antagonizar imediatamente as elites brasileiras (bem como a notável riqueza que essas elites haviam acumulado sob os governos do PT), por um lado, e o aumento em poucos anos do ódio brutal ao PT em geral e a Lula em particular entre as elites, por outro lado. Por que os governos do PT geraram tanto ódio entre aqueles que se beneficiaram materialmente de suas políticas? Por que o PT, assim como Lula e sua sucessora Dilma Rousseff, provocaram tanto ódio assim?
 
Há uma resposta fácil para essas perguntas: indignação com os escândalos de corrupção envolvendo Lula e outros líderes do PT. Sardinha, no entanto, minimiza a importância dessa resposta. Ele insiste que pelo menos Lula foi condenado sem nenhuma prova de seu envolvimento na corrupção. Sardinha também trata a tão anunciada luta contra a corrupção como uma cobertura para as ambições políticas mais profundas do ex-juiz federal e (Nota de D&D: o agora ex-ministro e pré-candidato à presidência da República) ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro. Ele encontra a prova gritante e escandalosa dessas ambições nas ações de Moro logo após as eleições presidenciais. Moro revelou suas próprias preferências e ambições políticas ao aceitar de repente ser ministro de Bolsonaro depois de ter facilitado as próprias condições para a vitória de Bolsonaro através da perseguição a Lula.
 
Em contraste com a narrativa dominante, a própria explicação de Sardinha sobre o ódio das elites ao PT e seus representantes decorre de sua rica formulação do conceito de diferenças antropológicas. Este conceito pretende capturar distinções histórica e geograficamente modificáveis ​​que 'definem a estabilidade sempre possível e precária de um grupo humano e as relações dentro dele' (p. 55). Em termos mais concretos, as diferenças antropológicas abrangem distinções em 'classe, cor, sexo, gênero, territorialidade, mobilidade e status' (p. 55). O que define cada categoria de distinção não é uma oposição binária, mas um continuum no posicionamento de indivíduos entre dois extremos. Tais extremos incluem 'ricos e pobres (diferença de classe), preto e branco (cor), homem e mulher (sexo), heterossexual e homossexual (gênero), centro e periferia (territorialidade), colonizador e indígena (mobilidade) e com e sem poder público (posição legal) '(pp. 55-56). Tomados em conjunto, esses extremos definem as diferenças que se acumulam e se cristalizam em pólos de privilégios e desvantagens em qualquer sociedade. Para dar um pouco mais de consistência a esse ponto, Sardinha afirma que, no Brasil, o 'homem branco-urbano-rico-descendente de colonizadores' (p. 58) marca um pólo de privilégio, enquanto a 'mulher-periferia-negra-pobre-descendente dos escravos (p. 58) distingue um pólo de desvantagem.
 
Sardinha afirma que o PT se engajou na diminuição das diferenças antropológicas que organizam o status social em um período de tempo notavelmente curto. A busca dessa rápida diminuição contrastava com uma estratégia mais tradicional que a esquerda tinha de expropriação de propriedades. Sardinha sustenta que o PT não seguiu essa estratégia porque temia uma reação imediata dos ricos. Em vez disso, decidiu-se por uma estratégia de trabalho mais sutil para diminuir as diferenças antropológicas por meio de outro tipo de expropriação, a saber, a expropriação dos enormes privilégios acumulados por essas diferenças. Essa estratégia teve a vantagem imediata de produzir um atraso na resposta das elites por três razões: primeiro, não foi tão nitidamente sentida quanto teria sido a expropriação definitiva da propriedade; segundo, a tremenda riqueza que essas elites acumularam sob os governos do PT 'compensadas' (p. 58) pela redução das diferenças antropológicas; finalmente, as expropriações desses governos eram simbólicas e não materiais.
 
A ilustração mais vívida e convincente de Sardinha da expropriação de privilégios vem da introdução do PT de proteções sociais para empregadas domésticas, que 'puseram um fim' (p. 61) a formas de sujeição que ocorreram no espaço de outra maneira obscuro da família como um locus de reprodução patriarcal. Em outras palavras, o PT instituiu 'uma medida legal aparentemente anódina' (p. 61) que teve o efeito de intervir na família para despojar seus membros do antigo privilégio de maltratar e abusar de empregadas domésticas. O resultado dessa intervenção foi nada menos que uma espécie de "câmera lenta" (p. 62), uma onda de ódio e ressentimento entre os membros da família que perderam esse privilégio. Como destaca Sardinha, esses membros começaram a clamar nas ruas (com as babás a reboque) pelo retorno a uma ordem 'na qual uma empregada doméstica era pouco ou nada mais que um apêndice da estrutura familiar patriarcal' (p. 62) .
 
Sardinha considera a força bruta de tais reações como prova de que o PT havia de fato perturbado algo fundamental no ordenamento tradicional da sociedade brasileira. De fato, ele insiste que apenas esse distúrbio pode explicar a intensidade do ódio contra o PT, bem como às próprias figuras de Lula e Dilma. A ascensão à presidência de um líder sindical sem ensino superior (Lula), seguida por uma mulher que foi torturada sob a ditadura (Dilma), desencadeou esse ódio ao desestabilizar simbolicamente a suposta “ordem natural das coisas”' (p. 112) no Brasil.
 
Sardinha reconhece que o PT cometeu 'erros' (p. 65), mas ele é vago sobre o conteúdo desses erros e desvia, perguntando como o PT não poderia ter cometido erros ao longo de seus longos anos no poder. A insistência de Sardinha de que o PT promoveu a 'aparência' (p. 19) da democracia no Brasil certamente parece uma observação crítica, mas na verdade aparece como uma espécie de elogio, já que ele passa a se concentrar em como o judiciário destruiu até essa aparência. Embora Sardinha reconheça hesitantemente que o PT promulgou políticas que enriqueciam os ricos, ele interpreta tais políticas como o preço que tinha para pagar pela redução das diferenças antropológicas. Sardinha também não pergunta o que parece ser uma pergunta óbvia, dada sua conceitualização dessas diferenças: é possível que o PT tenha fortalecido, ao invés de simplesmente diminuído, diferenças antropológicas por meio de compromissos com as elites?
 
Ainda assim, é fácil deixar de lado a atitude criticamente crítica de Sardinha em relação ao PT, porque há muito para admirar em sua análise. O novo livro de Sardinha é mais do que oportuno. Elabora um conceito de diferenças antropológicas com uma importação além do Brasil. Esse conceito delineia os complexos polos de desvantagens e privilégios que podem servir como objetos de intervenção para os governos que aspiram a reduzir as desigualdades. Sardinha também oferece um conto preventivo a esses governos, a saber, que há um preço enorme a pagar pela realização de tais aspirações. Esse preço vem na forma de um desencadeamento das forças da raiva, ódio, ressentimento e vingança. Na expressão assustadora de Sardinha, perturbar diferenças antropológicas é como 'brincar com fogo' (p. 111).
Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »
Daqui&Dali Publicidade 1200x90