26/03/2020 às 11h17min - Atualizada em 26/03/2020 às 11h17min

​FERNANDA TORRES E A PESTE

PARA LER, REFLETIR E SE EMOCIONAR!!!


“Ninguém sairá o mesmo desta quarentena”, diz o título do belíssimo texto publicado por Fernanda Torres, publicado hoje, 26, na Folha. A partir do livro “A Distant Mirror”, da historiadora americana Barbara Tuchman, sobre o calamitoso século 14 na Europa, período da peste negra, ela passeia por nossa quarentena.

Fala da “Guerra dos Cem Anos, o príncipe negro e a Batalha de Crecy; os dois papados, um romano e um francês empenhadíssimo no ignóbil mercado de indulgências; a corrupção na Igreja e os primeiros cristãos indignados que, décadas depois, influenciariam a reforma protestante de Lutero”. Lembra dos belíssimos (ou seria melhor dizer “fortíssimos”? Engraçadíssimos?) “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, do Monty Python, e “O Incrível Exército de Brancaleone”, de Mario Monicelli. Mas ela não quer fazer gracinha. Quer mostrar que nossa “peste” particular tem participação especial de “artistas” como Paulo Guedes – que fazem tudo para apresentar um final infeliz...

Leia Fernanda Torres. E, caso queira um momento de descontração no meio da peste, assista L’armata Brancaleone (O Incrível Exército de Brancaleone), de Mario Monicelli.

 
FERNANDA TORRES

Devo a João Ubaldo Ribeiro a indicação do livro “A Distant Mirror”, da historiadora americana Barbara Tuchman, sobre o calamitoso século 14 na Europa. Trata-se do período da peste negra, originada na Ásia central, que dizimou dois terços da população europeia e deu um fim à Idade Média.
É uma leitura e tanto para a quarentena de agora.

A Guerra dos Cem Anos, o príncipe negro e a Batalha de Crecy; os dois papados, um romano e um francês empenhadíssimo no ignóbil mercado de indulgências; a corrupção na Igreja e os primeiros cristãos indignados que, décadas depois, influenciariam a reforma protestante de Lutero. Está tudo lá.
Mas nada, no relato de Tuchman, se compara às procissões de penitentes em meio à peste. “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, do Monty Python, e “O Incrível Exército de Brancaleone”, de Mario Monicelli, têm cenas impagáveis sobre o tema. A diferença é que a autora descreve o caos com realismo e minúcia desoladora.

Clamando pela proteção do Senhor, os tementes se juntavam às romarias ainda sãos, caíam doentes no decorrer do trajeto e terminavam o périplo em covas rasas. Foi necessário o alarmante milagre da multiplicação de óbitos para que a Igreja suspendesse missas, procissões e aglomerações de fiéis.
Sete séculos depois, Edir Macedo solta um vídeo na internet afirmando que o medo da Covid-19 é obra de Satanás.
Não satisfeito, procura fundamentar a tese com o depoimento de um patologista, doutor Beny Schmidt, que deveria ter o registro de CRM cassado.
“Morrer é o destino humano”, diz o doutor. “A gente morre de hipertensão, de diabetes, de câncer e de hemorragia, mas de coronavírus a gente não morre, porque Deus não quis.”

Sete séculos depois da disseminação da peste, Jair Bolsonaro desce a rampa do Planalto para trocar gotículas com seus seguidores como se não houvesse amanhã.
O Posto Ipiranga da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, preferiu não comentar a indiferença do superior à curva exponencial de contágio pela Covid-19. O ministro tem crédito, estaríamos perdidos na mão do Weintraub. E os panelaços falaram por ele.
Jair governa para o próprio gueto. Se reinasse na Europa do século 14, pregaria o Apocalipse e incitaria o autoflagelo em cortejos suicidas.

Janaina Paschoal pediu a cabeça do presidente depois do abraça e beija dominical. Arrependida confessa do voto que concedeu ao capitão, a deputada representa uma fatia considerável de eleitores conservadores que começam a perceber que o ódio ao PT não pode servir de justificativa para o apoio a um furioso.
A aliança entre o ultraliberalismo econômico e o populismo de extrema direita enfrenta seu primeiro desafio com uma crise que mais parece lição divina.
A iniciativa privada será incapaz de substituir o Estado no atual salve-se quem puder. Todos os países do mundo estão abrindo as torneiras. Paulo Guedes será obrigado a agir na direção contrária de tudo o que aprendeu em Chicago e sonhou e planejou e prometeu. Duro acaso.
Torço para que o centro ressurja dessa emergência. E que o coronavírus, a exemplo da peste negra na Europa do século 14, venha abreviar o obscurantismo medieval travestido de liberal em que nos metemos.
É isso ou a procissão do “FODA-SE” dos possuídos do domingo passado, dispostos a se imolar pelo capitão. Na Europa trecentista, pelo menos, morria-se por Deus.

Há método na loucura de Macedo e de Messias. Quanto mais fatalidades, mais temor ao Altíssimo e mais Altíssimo para confortar. O bispo tem razão, o medo é a arma de Satanás.
No lado pagão, é preciso reconhecer, nota-se o mesmo estado de negação. Por não se sentirem ameaçados pela doença, os jovens descumprem o resguardo e lotam praias, bares e baladas. O egoísmo também serve de instrumento para o Capeta.

Ninguém sairá o mesmo desta quarentena. Daqui a quatro meses atingiremos, dizem, a imunidade de rebanho. Enterrados os mortos, espero que voltemos às ruas mais humanos e menos afeitos a fundamentalismos religiosos, políticos e econômicos.
Talvez esse vírus seja mesmo o recado de Deus. Deus natureza cansado do ódio, da ignorância, da irracionalidade, da brutalidade, da violência e da vileza dos mitos e profetas. Um Deus farto das trevas e ansioso por um Renascimento.
Aconteceu na Europa, 700 anos atrás.

Fernanda Torres
Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.
 
FSP 22.03.2020

 
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