01/07/2019 às 06h22min - Atualizada em 01/07/2019 às 06h22min

​DE QUE BRASIL É A BANDEIRA DO BRASIL


"A bandeira do Brasil é mesmo um símbolo, mas não um símbolo de nossa identidade como nação (...) Ela é um símbolo da formação histórica da sociedade brasileira, marcada pelo genocídio de centenas de povos indígenas e pela escravização", diz o linguista Marcos Bagno, ao se deparar com o uso da bandeira nas manifestações de extrema-direita
A bandeira do Brasil é mesmo um símbolo, mas não um símbolo de nossa identidade como nação ou de um povo que se reconhece “sob uma mesma bandeira”. Ela é um símbolo da formação histórica da sociedade brasileira, marcada pelo genocídio de centenas de povos indígenas e pela escravização, durante mais de trezentos anos, de milhões de pessoas sequestradas da África. Um símbolo de uma sociedade das mais injustas e perversas do mundo.
 
A bandeira atual, criada após a proclamação da República em 1889, é um aproveitamento da bandeira anterior, a bandeira do Império, com o mesmo campo retangular verde sobre o qual repousa um losango amarelo. A bobajada de que o verde representa “as nossas matas” e o amarelo, “o nosso ouro”, é, repito, uma bobajada: o verde representa a casa de Bragança, à qual pertencia Pedro I, e o amarelo representa a casa de Habsburgo, à qual pertencia a imperatriz Leopoldina.
 
A permanência de grande parte do estandarte imperial na bandeira republicana (lembrando que a República foi, de fato, um golpe de Estado militar perpetrado por um marechal) simboliza muito bem o que sempre tem sido a nossa triste e sanguinolenta história: os eventos mais marcantes, aqueles que são glorificados nas datas comemorativas e nos manuais oficiais, nunca tiveram uma real participação do povo, quase sempre foram um divertimento das elites. A independência, por exemplo, foi proclamada por um príncipe que, mais cedo ou mais tarde, herdaria o Brasil junto com o resto do império governado pelo pai. Só fez adiantar o processo.
 
Bandeiras de países como os Estados Unidos, a França e a Itália foram criadas depois de grandes movimentos revolucionários que transformaram radicalmente a vida nacional: a independência dos Estados Unidos (não por acaso chamada de Revolução Americana), a Revolução Francesa (que substituiu o antigo regime feudal) e a Unificação da Itália, conquistada depois de muitas batalhas. No caso do Brasil, nada de parecido: temos uma bandeira que representa a transição, em boa parte tranquila, de um regime monárquico para um regime republicano que nasceu autoritário, sob as botas macheralescas, e em nada modificou a estrutura oligárquica, excludente e pré-capitalista do país, podendo até mesmo ter sido uma reação das elites contra a abolição da escravatura no ano anterior.
 
Hoje, quando vejo essa bandeira ser usada por gente histérica, hipócrita e burra que sai às ruas para defender um governo chefiado por um indivíduo tacanho, ignorante, desqualificado, defensor da tortura e do assassinato em massa, ao qual se aliam outros tantos indivíduos que representam o que existe de mais abjeto, corrupto e obscurantista da sociedade, percebo por que nunca me identifiquei com esse símbolo de mau-gosto, cafona, que traz em sua faixa central um lema ridículo, o tal “ordem e progresso”, ainda mais ridículo porque originalmente, na formulação do filósofo positivista Auguste Comte, a trindade era composta por “amor, ordem e progresso”. Mas como falar de amor num país que mata uma mulher a cada hora e meia, um jovem negro a cada vinte e sete minutos, campeão mundial em assassinatos de lésbicas, gays e pessoas trans, primeiro lugar no planeta na eliminação de ambientalistas, que tem a polícia que mais mata no mundo, um país com 75% de sua população classificada como analfabeta funcional?
 
Não existe amor no Brasil: só existe uma ordem social perversa e um progresso que só favorece ao pequeno círculo de gente branca endinheirada capaz de pagar por ele. Pois que fiquem com essa bandeira os que querem usá-la para encobrir sua falta de dignidade, seu ódio de classe, sua recusa patológica de qualquer forma mínima de igualdade social. O patriotismo é um sentimento de repulsa à solidariedade universal e, no fundo, é sempre a defesa dos interesses de uns poucos contra os direitos de muitas e muitos. O patriotismo persegue, tortura e mata. Quem sabe quando o Brasil deixar de ser esse pântano malcheiroso onde borbulham todas as piores formas de injustiça e crueldade, a gente consiga desenhar uma bandeira que realmente simbolize as lutas e as conquistas do nosso povo sofrido. Até lá, vamos para a rua, porque é na rua que se fazem as revoluções.
 
Marcos Bagno
Professor, doutor em filologia, linguista e escritor.
É autor do livro "Preconceito Linguístico", publicado há 20 anos
e marco nos estudos da linguagem, com mais de 50 edições.
 
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