06/05/2020 às 16h19min - Atualizada em 06/05/2020 às 16h19min

BOLSONARO NÃO TEM MÉTODO DE AÇÃO POLÍTICA

ELE SE ALIMENTA DO CAOS


“A natureza e a estratégia das ações bolsonaristas envolvem criar fatos, medidas e declarações que aparentam confrontar normas e poderes estabelecidos”. É assim que Vinicius do Valle inicia o seu texto “Por que Bolsonaro adotou a lógica de negar a pandemia”, com o subtítulo de “O arsenal bolsonarista: conflito e caos como métodos da ação política”.
 
E segue: “É por meio do confronto e do caos, portanto, que o bolsonarismo mobiliza, responde às suas bases e ganha espaço e poder na sociedade. Assim, situações de caos e de desmanche institucional podem alargar a influência e o poder do presidente.”
 
É exatamente isso. É através da desordem que ele se ordena e põe o seu mundo e a sua presidência para andarem. É o caos que domina as suas “entrevistas” tanto à porta do Alvorada como seria na porta do inferno. Vinícius alerta que “por conta desse ineditismo de escolhas e práticas pouco usuais, que contrariam a lógica dos incentivos institucionais e econômicos, Bolsonaro muitas vezes é interpretado como sendo irracional e suicida, e já teve até mesmo sua sanidade mental questionada”. Mas Bolsonaro é exatamente isso. É irracional e suicida e sua sanidade mental certamente pode ser questionada. A sua inteligência é a de saber usar essas “qualidades” negativas a seu favor. É claro que a arrogância de um militar de baixo nível ajuda bastante. Ele vai avançando sinais como bem “entende”. Faz uma “jogada” aqui, outra acolá, detesta sinal vermelho.
 
Vinícius ainda argumenta que Bolsonaro, “no entanto, não é louco, ainda que manifeste características associadas à psicopatia e que, ultimamente, segundo informações de bastidores, esteja apresentando crises de insônia, cansaço e pânico”. Ele avalia que “o governo Bolsonaro corresponde a um momento particular na história brasileira. Tanto em leituras de acadêmicos como na dos atores políticos, da esquerda à extrema direita, a constatação dessa singularidade está presente. Por conta desse ineditismo de escolhas e práticas pouco usuais, que contrariam a lógica dos incentivos institucionais e econômicos, Bolsonaro muitas vezes é interpretado como sendo irracional e suicida, e já teve até mesmo sua sanidade mental questionada”.
 
Bolsonaro descobriu o valor da ousadia, do impulso e de certa arrogância na formação de lideranças. Iniciou uma carreira rastejante pelos corredores do Congresso, mas logo percebeu que havia caminho aberto para ser mais ousado, tentar alguns voos maiores, sem precisar tirar os pés do chão. Mas Bolsonaro não resistiu e tirou os pés do chão. Sua “competência” política durou pouco.
 
Diz Vinícius que “o  presidente, no entanto, não é louco, ainda que manifeste características associadas à psicopatia e que, ultimamente, segundo informações de bastidores, esteja apresentando crises de insônia, cansaço e pânico. Não é com base na loucura e em atributos morais que podemos entender as ações do governo Bolsonaro, e sim com base em seus interesses e métodos políticos. E, sim, as ações do presidente e do movimento que encampa possuem método e lógica, ainda que singulares”.
 
“Para entender o bolsonarismo,” – continua ele – “é preciso analisá-lo a partir do contexto em que ele emergiu: um momento de forte polarização ideológica, em que o antipetismo radical e a rejeição ao sistema político vigente se tornaram características centrais do ambiente político brasileiro. As manifestações de junho de 2013, iniciadas pela esquerda e, posteriormente, ampliadas com a entrada de atores à direita, marcaram o início desse período. Em seguida, o conjunto de três elementos criaram a tempestade perfeita para a desorganização da política e do tecido social de então: (i) o cavalo de pau na política econômica do governo Dilma Rousseff, que a partir da nomeação de Joaquim Levy iniciou um forte ajuste fiscal recessivo, entendido por muitos setores progressistas como um estelionato eleitoral; (ii) a forte crise econômica que assolou o país, gerando milhões de desempregados; e (iii) a Operação Lava Jato, que, com métodos pouco ortodoxos, trouxe à tona um gigantesco escândalo de corrupção, associado principalmente às gestões petistas no governo federal.
 
Com a base social lulista abalada em meio a uma crise econômica brutal que acabou sendo associada e vista como consequência da corrupção que a Lava Jato revelara, o lulismo vivenciou uma tempestade perfeita, coroada com a retirada do poder da ex-presidenta Dilma, em um processo de impeachment até hoje controverso. Mas, em meio a esse processo, não foi só o PT que ganhou rejeição e ódio de uma grande camada de brasileiros, e sim todo o sistema político e partidário, inclusive os partidos de oposição, compostos por forças tradicionais da política brasileira que, além de nunca terem despertado paixões, estavam também denunciadas em peso por corrupção.
Nesse contexto, novos atores emergiram e ganharam força no cenário político. Vale lembrar que a cientista política Camila Rocha nos mostra que, ainda nos anos Lula, na segunda metade da década de 2000, uma nova direita já vinha germinando no cenário nacional. Esse novo movimento se diferenciava da direita tradicional e tinha como principal característica a junção do ideário do ultraliberalismo econômico com a avaliação de que existia uma hegemonia cultural de esquerda no país, que precisaria ser combatida. Essa nova direita encontrou terreno fértil para crescer no contexto do pós-2013, já que ela não podia ser associada aos escândalos de corrupção da direita tradicional e que sua interpretação de que haveria uma hegemonia esquerdista do mundo podia ser vista como uma crítica a todo o sistema político e às instituições da sociedade civil brasileira. Ela, então, influenciou o nascimento de novos grupos, movimentos e atores políticos, entre eles o bolsonarismo, que até 2018 era apenas a versão radical e tosca do antipetismo, do pensamento antissistema e do autoritarismo sempre presente em nossa história política. As eleições presidenciais daquele ano marcaram o momento de aglutinação de todos esses movimentos em torno de Bolsonaro, que acabou se tornando a única opção viável eleitoralmente do campo conservador.
 
Lógica antissistema e embate constante
Caso Bolsonaro normalizasse seu comportamento ao chegar à Presidência da República, adequando-se às normas, ao decoro do cargo, à negociação política e ao discurso amplo e politicamente correto, ele seria visto como traidor por sua base social – como se tivesse se convertido em parte do “sistema”. A antropóloga Isabela Kalil nos mostra, com base em suas pesquisas com militantes de extrema direita, que, em momentos de ensaio de normalização e negociação política, Bolsonaro costuma ser criticado por setores de sua base que esperam do presidente mais radicalismo e enfrentamento. Em meio a esse jogo, Bolsonaro procura manter sua imagem de político diferenciado, em guerra contra um sistema poderoso que, conforme nos mostra o filósofo Marcos Nobre, passa ser encarado como toda a esfera institucional da democracia brasileira e a maioria dos políticos que a representa. O conflito constante é parte do DNA bolsonarista e, por esse motivo, conforme argumentei em artigo online no Le Monde Diplomatique Brasil (2 abr. 2020), situações de caos favorecem e alimentam o bolsonarismo.
Não por acaso, os grupos sociais em que o bolsonarismo é forte têm em comum o descontentamento com normas estabelecidas, quando não com a sociedade em geral. Em minha interpretação, destaco os seguintes grupos:
– Camadas do alto empresariado que, preocupadas em amplificar seus lucros, veem na regulação econômica e nos direitos trabalhistas entraves para seus negócios.
– Pequenos comerciantes locais que, afetados pela crise econômica, converteram-se ao antipetismo radical. Há entre eles também a ideia de que os impostos e direitos trabalhistas são a causa de sua situação econômica.
– Grupos ruralistas, madeireiros e mineradores que veem nas leis ambientais, na demarcação de terras indígenas e quilombolas e na legislação que classifica o trabalho em condições análogas à escravidão entraves para seus negócios.
– Grupos de policiais, guardas e profissionais de segurança privada que consideram o ideário de direitos humanos um entrave às políticas de combate à criminalidade. Ironicamente, há também um grupo de policiais criminosos próximo a Bolsonaro por causa das relações do clã com as milícias.
– Frações de autônomos e “empreendedores” individuais, grupo que agrega uma vasta gama de trabalhadores precarizados, desde profissionais uberizados até autônomos tradicionais. Nesse grupo há a ideologia do mérito decorrente unicamente do esforço próprio, individual, sem relação com ações coletivas ou auxílios estatais. Além disso, entre eles é comum os argumentos liberais contra a regulação estatal, os direitos trabalhistas e os impostos.
Além desses grupos ligados a setores econômicos e interesses materiais identificáveis, há pelo menos outros dois próximos ao bolsonarismo cuja identificação é puramente ideológica, e não ligada a fatores de classe ou ocupação. São eles:
– Setores evangélicos pentecostais: minhas pesquisas com evangélicos pentecostais mostram que entre eles é comum a interpretação de que o mundo vem passando por uma deterioração moral, que se manifestaria na violência, no uso de drogas, na pobreza, nos desvios da sexualidade heteronormativa, nos conflitos familiares etc. Para eles, a esquerda e os movimentos feministas e LGBT são vistos como consequência e parte desse fenômeno de deterioração. Diante desse quadro, pensam que a solução deveria ser a aproximação dos evangélicos com a política institucional e o fortalecimento de figuras fortes de direita que romperiam a hegemonia “esquerdista e imoral”, tais como Bolsonaro. Além disso, conforme argumenta o antropólogo Ronaldo Almeida, a teologia da prosperidade, que advoga a fé para obter prosperidade econômica de forma individual, sem o questionamento das estruturas sociais e sem ajuda do Estado, possui afinidades com o liberalismo e a ideologia do empreendedor individual, categoria também próxima ao bolsonarismo, conforme citamos anteriormente.
– Um grupo que, na falta de nome melhor, chamaremos de conservadores populares. Entre esses há os predominantemente antifeministas, anti-LGBT ou contra os direitos humanos, de forma geral. Há também um perfil mais genérico, muito comum nos interiores e no “Brasil profundo”, mas não restrito a esses espaços, composto por pessoas que manifestam desagrado com a complexidade do mundo, seja ela manifestada no campo social, cultural, intelectual, urbano ou econômico. Essas pessoas veem no autoritarismo e na defesa de uma ordem social clara e simples, que remete a um passado seguro (porém, inexistente), uma proteção e uma salvaguarda diante da complexidade desse mundo que não entendem bem. Essas pessoas também veem na intelectualidade, no pensamento complexo e abstrato e na existência de culturas e formas de vida distintas uma hegemonia de esquerda e do “politicamente correto”, a qual deve ser combatida em prol de uma ordem simplista e conhecida do mundo.
Todos esses grupos, de diferentes formas, possuem demandas contra normas estabelecidas, sejam elas de leis trabalhistas e ambientais, normas de trânsito, regulações econômicas, regulações sobre uso de armas, demarcações de terras indígenas, políticas de direitos humanos, de igualdade de gênero, de combate à LGBTfobia e de respeito à diversidade. Todas essas normas são entendidas, por cada grupo em questão, como sendo tanto uma parte do “sistema” quanto elementos da “hegemonia esquerdista mundial” que precisaria ser derrotada. É importante um olhar atento para a composição dessa base: ela abarca setores tanto do pico quanto da base da pirâmide social brasileira. Esse é, aliás, um aspecto que nenhuma análise sobre o bolsonarismo pode deixar escapar: ele possui uma base real, inclusive entre setores populares.
 
Guerra de movimento
A natureza e a estratégia das ações bolsonaristas envolvem criar fatos, medidas e declarações que aparentam confrontar normas e poderes estabelecidos. É por meio do confronto e do caos, portanto, que o bolsonarismo mobiliza, responde às suas bases e ganha espaço e poder na sociedade. Assim, situações de caos e de desmanche institucional podem alargar a influência e o poder do presidente. Vale lembrar que o caos pode servir como justificativa para a implantação de operações de Garantia da Lei e da Ordem e para a decretação do estado de sítio – ambas situações que aumentam o poder presidencial. Em versões mais amenas, podem também facilitar decisões judiciais atípicas a favor do presidente, embasadas na extraordinariedade do momento. Em versões mais fortes, a dinâmica de conflito e caos pode servir como pretexto para um golpe militar. Não menos importante, o estado de desorganização social constrói terrenos férteis para a criação, a ampliação e o fortalecimento de milícias que, por meio ilegal, oferecem segurança e controle de produtos específicos e do tráfico de drogas em territórios desassistidos pelo Estado. Em outras palavras, a milicianização da sociedade parece ser uma política de governo, ao mesmo tempo que as milícias constituem parte de sua base de sustentação.
O bolsonarismo, mais do que incentivar o caos e o conflito social, faz isso de forma planejada. Em seu método de disputa política, o clã Bolsonaro se utiliza de estratégias do campo militar. Tenho proposto a categoria da guerra de movimento para entender suas ações, em uma recuperação atualizada do conceito homônimo gramsciano. Assim, na guerra de movimento bolsonarista, a luta política é estabelecida de forma múltipla, sobrecarregando o debate político com várias pautas, utilizando-se em massa de redes sociais, de convocações de atos de rua, pronunciamentos públicos, ações para confundir a imprensa e uso da caneta presidencial para decisões políticas controversas. Em cada ação, discurso ou canetada, há o ataque às instituições e a grupos considerados inimigos, em meio a uma narrativa criada em que sempre há uma grande conspiração que necessita ser desmontada pelo capitão e suas forças patrióticas. Tão importante quanto identificar esses instrumentos é entender que eles são utilizados em cadeia de movimentos, em que as ações e versões mudam de forma rápida conforme os ventos do dia, forçando que a conjuntura esteja permanentemente em movimento. Desse modo, Bolsonaro sempre age com rapidez suficiente para estar no ataque e vários passos à frente dos adversários políticos, ainda que por vezes lance mão de ações aparentemente contraditórias.
 
Peguemos o exemplo da cadeia de movimentos de Bolsonaro na crise sanitária do coronavírus: (1) Bolsonaro diz que o coronavírus é uma “gripezinha” que não vai atingir o Brasil e sua economia. (2) Assim que o vírus chega ao país, contrariando o postulado pelo presidente, um de seus filhos diz que a culpa do vírus é da “ditadura comunista da China”, tensionando ideologicamente a pandemia. (3) Pouco tempo depois, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta passa a atuar de forma a levar a sério o vírus, atraindo a sociedade para o trabalho concreto que o governo estaria fazendo. (4) Mas, dado que o enfrentamento ao vírus geraria um grande impacto econômico, Bolsonaro rapidamente vai à TV e condena o fechamento do comércio, colocando-se como protetor da atividade econômica e dos empregos, jogando aos governadores e prefeitos o ônus das medidas de isolamento, e novamente questionando a gravidade dos fatos. (5) Ao mesmo tempo, os filhos do presidente produzem e replicam postagens, afirmando que as aglomerações do Carnaval foram as responsáveis pela transmissão do vírus e culpando artistas, prefeitos e governadores que promoveram as festas, mais uma vez tensionando ideologicamente a crise. (6) O ministro da Saúde volta a endossar a política de isolamento e a ressaltar a seriedade do quadro sanitário do país. (7) Conforme o número de mortos aumenta, Bolsonaro passa a desacreditar os dados oficiais, insinuando que médicos estariam mentindo sobre as estatísticas para prejudicar o governo. (8) Bolsonaro sai às ruas de Brasília para cumprimentar comerciantes, contrariando as medidas de isolamento defendidas por seu próprio ministro e diz que tentará liberar a volta à normalidade por meio de um decreto. (9) Em meio a uma onda de críticas e a uma crise estabelecida com seu ministro da Saúde, que ganha popularidade com as ações de combate à pandemia, Bolsonaro volta à TV em novo pronunciamento nacional, aparentemente recuando de suas posições anteriores, atestando a realidade do vírus, a ausência de tratamento cientificamente comprovado e a necessidade de compatibilizar o combate à pandemia e a preservação dos empregos. (10) Bolsonaro atrasa a sanção do projeto aprovado pelo Congresso de ajuda emergencial aos comerciantes, autônomos e vulneráveis, postergando o trâmite de socorro estatal aos mais necessitados. (11) Em mais um episódio de crise com seu ministro da Saúde, Bolsonaro tenta demiti-lo, mas não encontra apoio para tal, transparecendo um possível isolamento no cargo. (12) Bolsonaro passa a defender o uso da cloroquina para o tratamento do vírus e a apoiar atos contra o isolamento social, participando de alguns deles por videoconferência e tornando suas saídas para cumprimentar pessoas nas ruas um hábito, tensionando a permanência do titular do Ministério da Saúde, que acaba manifestando em uma entrevista seu desagrado com a situação. (13) Considerando a entrevista do ministro da Saúde um ato de insubordinação e quebra de hierarquia, consegue demiti-lo, em plena pandemia. (14) Imediatamente após a substituição na pasta da Saúde, Bolsonaro dá uma entrevista dizendo que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, estaria boicotando seu governo e lutando para retirá-lo do poder. (15) Dias depois, o presidente apoia atos em frente a quartéis do Exército ao redor de todo o país, os quais pedem o fim do isolamento social, o fechamento do Congresso e do STF e a instalação de um novo AI-5. Ele vai pessoalmente ao ato de Brasília, em frente ao Quartel General do Exército, onde discursa e cumprimenta apoiadores.
 
Nos fatos citados, cada passo é dado de forma rápida, em questão de dias ou horas, alternando entre estratégias discursivas e ações concretas. A cada movimento, reforça-se a narrativa de que Bolsonaro e seu governo estão lutando contra um inimigo que precisa ser derrotado para o bem do país. Isso faz que seus apoiadores estejam constantemente mobilizados e em estado de guerra, enquanto a oposição não consegue responder a todas as frentes de ataque em bloco e à altura. Mais do que isso, em cada radicalização do capitão, seus seguidores vão se tornando também mais radicais e coesos, num processo em que a experiência comum vai moldando o grupo, à imagem e sob certo controle do líder. Em meio a esse movimento, a radicalização também vai normalizando práticas e discursos. Em outras palavras, a corda vai sendo esticada e, com isso, vai se ampliando a gama de ações e discursos aceitos na disputa política. Durante essa tensão pode haver recuos, mas sempre os atos posteriores mostram que se tratava de mais um movimento estratégico, para uma nova cadeia de ações que vêm na sequência.
 
O mais recente episódio de conflito no governo, envolvendo o presidente e o ex-ministro Sérgio Moro, pode ser visto como mais um capítulo da guerra de movimento bolsonarista. O controle da Polícia Federal para Bolsonaro tem uma finalidade dupla, servindo tanto para estancar as investigações que envolvem a si e seus familiares, como para minar as instituições de controle do Estado de direito – ou seja, do “sistema”. Moro, por sua vez, não poderia aceitar a interferência presidencial sem perder sua imagem entre os setores do Judiciário, do alto escalão da PF e da sociedade que lhe dão suporte, ainda mais depois que as investigações chegassem à imprensa, o que já estava prestes a ocorrer. Como o ex-juiz da Lava Jato tem pretensões políticas, ele resolveu ir para o confronto para disputar com o presidente a proeminência sobre a base de direita e extrema-direita do Brasil.
Com a deserção de Moro, Bolsonaro voltou contra ele sua máquina de guerra. No primeiro pronunciamento presidencial, horas depois da saída do ex-ministro, Bolsonaro já acusou Moro de usar a disputa em torno da direção da PF para barganhar uma vaga no STF. Imediatamente, as redes virtuais bolsonaristas começaram a trabalhar: levantaram hashtags a favor do presidente, condenaram a aproximação do ex-aliado com a arqui-inimiga Rede Globo e chamaram-no de traidor. O plano não é diferente das demais frentes de combate bolsonarista: envolve criar diferentes enredos para construção da narrativa em que Bolsonaro estaria lutando contra um “sistema poderoso”, contra o “esquerdismo e o comunismo”, luta que Moro teria abandonado para se juntar aos “inimigos da nação”. Iniciaram os discursos: “O sistema persegue Bolsonaro e Moro está se juntando justamente a esses inimigos do establishment”; “Moro nunca foi tão de direita assim”; “Ele não era tão armamentista, trouxe pessoas abortistas para perto de si”; “Era antipetista, não anticomunista”; “Ele se foi e a luta contra o comunismo deve continuar”.
Possivelmente, o episódio signifique alguma redução na base bolsonarista, mas a tática presidencial de estar sempre em movimento e para frente cria mobilização e pauta os termos do debate, direcionando o que se fala na sociedade e, consequentemente, o que não se fala tanto assim. Nesse processo, conforme já assinalado, a base do presidente vai se tornando cada vez mais radical, à sua imagem e semelhança, ainda que quantitativamente ela possa se reduzir. Vale dizer que, um dia depois da saída do ex-juiz da Lava Jato, Bolsonaro já havia reabsorvido uma parte dos seus apoiadores que, inicialmente, haviam feito postagens criticando o presidente. Caso esse movimento de reabsorção se confirme, o que parecia à primeira vista um tiro em seu próprio pé terá servido para consolidar uma base mais radical e que vê exclusivamente em Bolsonaro a referência política.
 
Por todas essas características, por vezes, as ações do presidente parecem irracionais, mas não são. O modus operandi do bolsonarismo cria ações que rompem a lógica regular da política, dificultando sua compreensão e, por consequência, o enfrentamento ao governo. Maquiavel, no século XVI, mostrou ao mundo que a moral do governante é distinta da moral do homem comum. Recuperando o pensador florentino, Max Weber, no início do século XX, propõe o princípio da ética da responsabilidade para pensar as ações de quem está em posição de poder, sendo representante de um Estado ou de um grupo. Para Weber, a ética da responsabilidade nortearia ações dos governantes, que avaliariam os resultados e os melhores meios para atingi-los, de forma desprendida das convicções pessoais e da moralidade privada. O bolsonarismo, a princípio, subverte as noções de meios e fins, tornando os meios os próprios fins em si. Dessa forma, o conflito e o caos viram tanto o método de ação quanto o resultado esperado, num ciclo veloz e constante, que garante a existência de seu movimento político e sua competitividade eleitoral. Nessa repetição também é possível vislumbrar uma conclusão derradeira, que seria a ruptura do Estado democrático de direito e a instalação de um ultraliberalismo autoritário – este, sim, o fim último do bolsonarismo.
 
O combate ao bolsonarismo
As ações de Bolsonaro representam hoje uma grande ameaça ao país, atingindo a democracia, destruindo as instituições por dentro e flertando com a instalação de um regime de exceção. No atual momento, suas ações também atingem a saúde pública e colocam vidas em risco, dado que o boicote do presidente às medidas de isolamento social e às políticas públicas sanitárias pode gerar um adicional de milhares de mortos em meio à pandemia.
O enfrentamento ao bolsonarismo torna-se, dessa forma, necessário para qualquer força responsável e democrática do país. No entanto, esse enfrentamento precisa ser feito de forma estratégica. Do contrário, qualquer investida só servirá para alimentar a lógica de conflito e caos, amplificando os ânimos bolsonaristas. Diante da estratégia do conflito e do caos em movimento, que invariavelmente resulta em conflitos internos, como mostram os episódios com Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro, é preciso aproveitar as oportunidades e minimizar as margens de ação e movimentação do bolsonarismo, fragmentando sua base institucional e social e encurralando-o com outros movimentos rápidos e certeiros. Em outras palavras, é preciso aproveitar os breves intervalos de vulnerabilidade para enfraquecer o apoio do presidente e promover uma situação em que Bolsonaro tenha pouca margem de manobra, de modo que possa ser tirado do poder com poucas ações e em curto espaço de tempo. Para isso, no plano institucional, independentemente do método adotado – impeachment, acusação de crime comum, afastamento por incapacidade ou renúncia –, será preciso encurtar prazos e agir coordenadamente. Mais do que nunca, faz-se necessária a coordenação política entre as forças democráticas, de forma mais ampla possível, desde a oposição consolidada até ex-bolsonaristas que abandonaram – e continuam a abandonar – a tropa do capitão. Já no plano social, é preciso entender os anseios materiais da base popular bolsonarista para oferecer diálogo e respostas concretas às demandas de pelo menos parte delas, e que sejam melhores e mais reais das que o bolsonarismo oferece. Nesse sentido, atenuar os efeitos devastadores do capitalismo pode ser o melhor remédio para que não tenhamos mais bolsonaros na vida pública brasileira.
 
Vinicius do Valle é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e professor da Faculdade Santa Marcelina. É autor de” Entre a religião e o lulismo: um estudo com pentecostais em São Paulo”, publicado pela editora Recriar (2019). Vinicius fala sobre essa obra no episódio #19 do podcast Guilhotina ().
 
Le Monde Diplomatique

 
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